segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ORPHÉE, de Jean Cocteau

[Meu primeiro texto sobre minhas impressões acerca da Sétima Arte, inteiramente motivado por sentimentos. Eu que sempre escrevo críticas sobre a alcunha canhestra da Razão; apresento-lhes este, que foi vindo à medida (e simultaneamente) em que eu assistia o filme de Cocteau. Dava pausa, e escrevia meus sentimentos isentos de pensamento medido e organizado e retornava ao filme, e assim aconteceu a todo momento de sua escritura, feito uma roda-viva de emoções. Estou muito feliz por esta metamorfose que vem me abraçando de forma tenra e generosa, estendendo-me mão segura com imenso cuidado, acalmando meu espirito que sempre foi de natureza selvagem e arredia... Meu cérebro foi-me entregue ao nascer muito maior do que meu coração, e por isso mesmo os instintos sempre pulavam à frente de qualquer manifestação passional. Porém, ultimamente venho recebendo um afeto extremamente libertador, de modo que meu coração pequenino e imensamente delicado, enfim encontrou um outro também igual em leveza para dialogar e desenvolver-se. Compreendo a Vida dando-me novamente mais uma chance de reafirmar minha Natureza e seguir sendo eu mesma.]

*Este texto é dedicado a Pietro Milan e Bruno Colli, e a todos das equipes “Flux’s”.



Quem pensa em demasia não percebe a magia que há nas coisas, no mundo, ao seu redor... O pensamento age sob o efeito preciso da materialidade, quase como um narcótico poderoso impedindo de vermos a poesia existente na Vida; mas o sentimento e a intuição refletem tudo o que há por detrás das coisas, ou seja, revela sua essência. Aqui nesta película, “Orfeu” (Jean Marais) é um poeta incrédulo. Seus olhos revelam o que sua mente nega: atravessar um  espelho para integrar outra realidade (ou a verdadeira realidade das coisas que ele então, desconhecia existir?) Cocteau brinca a todo instante com os ‘reflexos’, seja de maneira obvia ou irônica, sempre coloca nesta releitura do mito grego de ‘Orfeu e Eurídice’ Sonho, Realidade, Delírio...

O que vivemos em termos de realidade ‘é’ realmente? O que somos dentro de nós é refletido para fora de nós? Se o é... como sabemos se somos exatamente o que refletimos aos olhos dos outros? E aos nossos olhos? O que queremos ver e ser? Vida ou Morte? Uma coisa é diferente da outra? O cineasta francês Jean Cocteau instiga o espectador mais atento a essas reflexões quando propõem o falecimento de um jovem poeta, o qual retorna à vida de forma escrava e subserviente nas mãos da ‘princesa’ (interpretada pela belíssima Maria Casares), ela personificando a ‘Morte’.

Eis que inicia o lirismo e beleza da releitura do mito grego, em “Orphée”  (1950) de Jean Cocteau. Estátuas gregas por todo o jardim da casa de “Orfeu”, quadros com imagens daquela civilização antiga e seus mitos dependurados discretamente dentro dos ambientes da casa, sugerem a fonte da estória. O Cinema deste cineasta francês precisamente é imagem pura em simbolismos discretos e suaves. Um preto & branco impecável! Sob a direção fotográfica de Nicolas Hayer. Cenas em escala de cinza e branco pincelado graciosamente ao redor dos negros... do inicio ao fim vemos o que há de mais casto da fotografia em movimento.

Uma brincadeira de faz de conta inerente ao universo teatral, sempre permeia o imaginário dos filmes de Jean Cocteau, aqui sobressai os efeitos de iluminação tipicamente dramáticos provenientes do palco. Os focos de luz como que relâmpagos de sentimentos expostos à flor da pele. Um rádio que não toca musicas, mas que profere poemas (ou mensagens cifradas do ‘Mundo Inferior’), a ‘Morte” bela e precisa, com seu semblante sereno, calculado e inóspito... uma beleza que todos desejam: a suposta paz de espirito não atormentada pelas ondas involuntárias do amor romântico... mas a duplicidade dos reflexos nos espelhos denunciam... [‘e aquela primeira noite a morte de Orfeu entrou no quarto dele e o observou dormir’].


De modo muito inteligente Cocteau ‘reprograma’ os locais, personagens e circunstancias do mito original, para reconstruir outra realidade, fluindo de maneira cinematograficamente coerente para esta narrativa da estória grega de ‘Orfeu e Eurídice’. Foi num bar chamado “As Bacantes” onde a tragédia iniciou-se... os mensageiros da Morte surgem como selvagens de motocicleta, em pleno anos 50.

O vestido da morte que muda de cor, insinuando suas emoções, é algo quase imperceptível, mas aparece lá como um faixo de luz severa onde, a priori, estaria apenas a frieza calculada. Sim, nos filmes de Cocteau, há poesia e frescor juvenil das paixões arrebatadoras até mesmo na “Morte” que se apaixona por Orfeu... [‘a cada noite a morte de Orfeu, voltava ao seu quarto’]. O amor cantado pelas estrofes visuais do cineasta francês como que namorando as estrofes do poema grego, num entrosamento espetacular de sentimentos entre uma arte e outra.

No final das contas, Cocteau também expõem o lado perverso de todo artista: o desejo maior de manter sobre si seu mundo particular repleto de egoísmo criativo... onde nada penetra o artífice quando obcecado pelo afã criativo. Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François Périer) quando este lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a morrer... [‘vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida... e verá a morte trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro...’].

Um remoto preludio do filme Matrix, onde ‘Neo’ atravessa o espelho para ver a verdadeira Natureza das coisas... Outro repente de câmera deste filme dos anos 50 nos remete ao futuro ‘Enter The Void’, de Gaspar Noé, com a visão da câmera sendo o próprio reflexo de sua persona. Simplesmente a história do Cinema reconhecida por ela mesma, e remontada atemporalmente numa magia que se revela aos olhos apenas dos amantes da Sétima Arte, onde Jean Cocteau imprime de ponta a ponta com efeitos simples de ilusionismos alcançados através da montagem inteligente.

Arte em estado puro. Um cinema destilado. [‘A vida é uma longa morte... Esta é a terra de ninguém. Aqui estão as memórias dos homens e a ruina de sua descrença’]. Os filmes de Jean Cocteau são um eterno estado de sonho... uma realidade surreal (do artista) dialogando e interferindo no que achamos estarmos sóbrios (ou em estado de homens). [‘Não existe nada mais criador de hábito que o próprio habito (...) as palavras que você usa não têm significado, aqui. (...) Não pergunte nada. Continue andando...’]

Katiuscia de Sá
Em 17 de Fevereiro de 2014, às 00:02h.

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*E para quem deseja conhecer um pouco mais sobre Jean Cocteau, há uma excelente matéria no Moonflux, assinada por Pietro Milan: http://moonflux.com/artistadiretor-jean-cocteau/