domingo, 23 de dezembro de 2012

FICHARIO - 2: ASPECTOS DA NOUVELLE VAGUE (*relacionados ao elemento surpresa, ainda em pesquisa)

- a corrente Nouvelle Vague aposta num estilo, na consciência do cinema como aparato, uma recusa da fidelidade a processos mentais contínuos.

- o argumento de Truffaut contra as adaptações (literárias para o cinema) consistia em afirmar que os diretores de cinema se tornavam meros funcionários dos roteiristas, vitimas da ditadura da dramaturgia, verificando aí uma atitude protocolar e subserviente diante do potencial do estilo. Para a geração da Nouvelle Vague, é a mise-em-scène a grande expressão, o espaço de autenticidade, o espaço dos autores.

- Os jovens artistas da Nouvelle Vague admiravam o cineasta italiano do neo-realismo Roberto Rossellini, este acreditava na filmagem como investigação que parte de uma página em branco e só termina na montagem, que traz suas próprias revelações.

- sobre a montagem de O ACOSSADO, primeiro filme de Jean-Luc Godard: a historia é trágica, mas a câmera é autônoma e independente dos personagens e até do drama, revelando cartazes de filmes que funcionam como comentários brincalhões ou fatalistas sobre o destino de ‘Michael’. Mais que revelar dois personagens interessantes, a novidade de ‘Acossado’ é o modo de filmar lúdico, heterogêneo, devedor de muitos gêneros culturais, da poesia à entrevista televisiva, sem pretensões ilusionistas. Um filme que se permite a homenagem, o comentário, o esforço poético e o espirito de ensaio e discussões sobre questões da atualidade.

- características gerais encontrados nos trabalhos individuais de filmes da Nouvelle Vague: noção de identidade/ locações externas para realizar a trama (normalmente locais frequentados pelos realizadores) isso explicita uma outra concepção de espaço, historicidade, de relação com a realidade imediata e documental; (com isso os jovens cineastas inauguram a entrada de novos equipamentos para dar conta das gravações externas: uso do Nagra e câmeras de documentários/ deslocamento do roteiro para privilegiar a mise-em-scène/ montagem ágil, conceitual e moderna/ inclusão de outros tipos de linguagem artística para ajudar a contar a trama: quadrinhos, jornais, programas televisivos (o prenuncio da metalinguagem como recurso lúdico-narrativo)/ voz em off/ lembrete a todo instante de que o filme é um filme (não há fuga da realidade)/ linguagem coloquial/ atores (atrizes jovens e desconhecidos)

“recuperar a sensação da infância exige, contraditoriamente, tornar os procedimentos mais adultos, radicais e estranhos. É preciso recriar a inocência perdida, ‘limpar o olhar’, do espectador, pela descontinuidade da narração. É preciso amadurecer, para tornar-se genuinamente jovem.”

- a herança da Nouvelle Vague são aproveitados e utilizados, mas isoladamente, sem o contexto, as bases e a coerência de projeto que os unia. Os principais cineastas de Hollywood gostam de citar o movimento e cineastas independentes de todo o mundo reverenciam a onda francesa dos anos 1960 e, com o surgimento das universidades de cinema, completou-se o processo de canonização da Nouvelle Vague.

- mas a reedição da Nouvelle Vague é uma assombração improdutiva: o que podemos depreender dessa bela trajetória é que cada geração deve procurar ou inventar sua tradição e sua inocência, mas a reflexividade que permeou aquela geração é cada dia menos descartável.
_______________ 
MANEVY, Alfredo – cap. 'Nouvelle Vague', P: 233-252, in: MASCARELLO, Fernando (org) - Historia do Cinema Mundial, Campinas, SP: Papirus, 2006 – (Coleção Campo Imagético). 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Capítulo: O SACRIFÍCIO

*texto retirado do livro:
TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. ESCULPIR O TEMPO; [tradução Jefferson Luiz Camargo]. 2- ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998. [pp. 260-275]



A ideia para O Sacrifício surgiu em mim muito antes que eu
pensasse em Nostalgia. As primeiras anotações e os primeiros
esboços, as primeiras linhas frenéticas, datam do tempo
em que eu ainda morava na União Soviética. O núcleo devia
ser a história de como o herói, Alexander, iria ser curado
de uma doença fatal graças a uma noite passada na cama
com uma feiticeira. Desde aqueles primeiros dias e durante
todo o tempo em que trabalhei no roteiro, estive preocupado
com a idéia de equilíbrio, de sacrifício, do ato sacrificial,
com o yin e o yang da personalidade; essas preocupações
tornaram-se parte integrante do meu ser, e tudo que vivenciei,
desde que passei a morar no Ocidente apenas serviu
para tornar mais intensa essa preocupação. Preciso dizer que
as minhas crenças básicas não mudaram desde que aqui cheguei;
desenvolveram-se, aprofundaram-se, tornaram-se mais
sólidas; ocorreram mudanças de intervalo, de proporção. Assim,
enquanto evoluía, o projeto de meu filme também foi
mudando de forma, mas espero que a ideia central tenha
permanecido intacta.
O que me impeliu foi o tema da harmonia que nasce apenas
do sacrifício, da dupla dependência do amor. Não se
trata de amor mútuo: o que ninguém parece entender é que
o amor só pode ser unilateral, que não existe outra espécie
de amor, que, sob qualquer outra forma, não é amor. Se
não houve entrega total, não é amor. É impotente, e no momento,
é nada.
Acima de tudo, estou preocupado com o indivíduo capaz
de sacrificar a si mesmo e a seu modo de vida — sem se
preocupar em saber se sacrifício é feito em nome de valores
espirituais, pelo bem do próximo, para sua própria salvação,
ou em nome de tudo isso. Tal comportamento exclui,
por sua própria natureza, todos aqueles interesses egoístas
que constituem uma base lógica "normal" para a ação; recusa
as leis de uma visão de mundo materialista. E sempre
absurdo e pouco prático. E, apesar disso — ou, na verdade,
justamente por isso — a pessoa que age desse modo realiza
mudanças fundamentais nas vidas das pessoas e no curso da história.
O espaço que ela habita torna-se um ponto de
contraste característico e raro em relação aos conceitos utilitários
da nossa experiência, uma área onde a realidade —
eu diria — está presente de forma extremamente forte.
Pouco a pouco, essa consciência levou-me a pôr em prática
meu desejo de realizar um longa-metragem sobre um
homem cuja dependência em relação a outros leva-o à independência e para
quem o amor é simultaneamente a suprema servidão e a máxima liberdade.
E, assim, quanto mais claramente eu distinguia a marca do materialismo na face
do nosso planeta (independentemente de estar olhando para o
Ocidente ou para o Oriente), quanto mais me deparava com
pessoas infelizes e via as vítimas de psicoses, sintomas de
uma incapacidade ou relutância em perceber por que a vida
perdera toda a alegria e todo o valor, por que ela se tornara
opressiva, mais eu me sentia comprometido com esse
filme, como se ele fosse a coisa mais importante da minha
vida. Parece-me que, atualmente, o indivíduo se encontra
em uma encruzilhada, confrontado com a opção de uma existência
fundamentada em um consumismo cego, sujeito ao
avanço inexorável da nova tecnologia e à infinita multiplicação
dos bens materiais, ou, então, de buscar um caminho
que conduza à responsabilidade espiritual, um caminho
que, enfim, pode significar não apenas sua salvação pessoal,
mas também a salvação da sociedade como um todo; em outras
palavras, voltar-se para Deus. Esse é um problema que
ele tem que resolver sozinho, pois só a ele cabe descobrir
uma vida espiritual equilibrada para si mesmo. Ao resolvê-lo,
ele pode se aproximar do estado em que pode ser responsável
pela sociedade. Este é o passo que se transforma
num sacrifício, no sentido cristão de auto-sacrifício.
Mais uma vez somos lembrados da máxima segundo a
qual nossa vida nesta terra foi criada para a felicidade, e que
nada é mais importante para o homem. E embora isso só
pudesse ser verdade caso se alterasse o significado da palavra
felicidade — o que 6 impossível —, tanto no Ocidente  
quanto no Oriente (não estou me referindo ao Extremo
Oriente) uma voz dissidente não seria levada a sério pela
maioria materialista.
Pressuponho que o homem moderno, em sua maioria, não
está preparado para negar a si mesmo e a seus interesses
pelo bem de outras pessoas ou em nome do que é Maior,
do que é Supremo; com maior prontidão, trocaria sua própria
vida pela existência de um robô. Reconheço que a idéia
de sacrifício, o ideal cristão do amor ao próximo, não desfruta
de popularidade — e que ninguém pede o autosacrifício.
Este é encarado como idealista e pouco prático.
Porém, os resultados do nosso modo de vida,
do nosso comportamento,  são bastante evidentes:
a erosão da individualidade pelo egoísmo manifesto,
a degeneração dos laços humanos em relacionamentos
insignificantes entre grupos,
e, o que é mais alarmante, a perda de qualquer possibilidade
de retorno àquela forma de vida espiritual mais elevada
que é a única digna da humanidade e que representa a única
esperança de salvação do homem. Um exemplo irá ilustrar
o que quero dizer com a importância primordial
atribuída aos interesses materiais. A fome física pode ser aliviada
de maneira bem simples através do dinheiro; atualmente,
tendemos a utilizar a mesma fórmula ingenuamente
marxista: "dinheiro = bens" em nossos esforços para fugir
do sofrimento interior. Quando sentimos inexplicáveis sintomas
de ansiedade, depressão ou desespero, prontamente
nos entregamos aos cuidados de um psiquiatra ou, melhor
ainda, de um sexólogo, que assumiram o lugar do confessor
e que, achamos, acalmam nossas mentes c restituem nas
à normalidade. Tranqüilizados, pagamo-lhes ao preço
do dia. Ou, se sentimos necessidade de amor, dirigimo-nos
a um bordel e novamente pagamos em dinheiro — não que
precise, necessariamente, ser um bordel. E, tudo isso, apesar
de sabermos perfeitamente bem que dinheiro algum pode
comprar amor ou paz de espírito.
0 Sacrifício é uma parábola. Os acontecimentos significativos
que contém podem ser interpretados de várias formas.
A primeira versão era intitulada A Feiticeira, e narrava a his-
tória da cura espantosa do protagonista, que sofria de câncer.
Como o médico da família lhe tivesse comunicado que
seus dias estavam contados, Alexander, ao atender, um dia,
a porta, deparou-se com um adivinho — o precursor de Otto
na versão definitiva — que deu a Alexander uma instrução
estranha, quase absurda: que ele fosse até certa mulher, tida
como feiticeira, e passasse a noite com ela. O doente obedeceu,
por ser sua única saída, e, pela graça de Deus, foi
curado; a cura foi constatada pelo maravilhado doutor. E,
então, numa noite triste e tempestuosa, a feiticeira apareceu
na casa de Alexander, que, a seu convite, deixou ale-
gremente sua esplêndida mansão e sua vida respeitável e
partiu com ela, levando apenas um velho sobretudo às costas.
Em termos gerais, o filme devia ser não apenas uma
parábola sobre o sacrifício, mas também uma história de como
um indivíduo é salvo. E o que espero é que Alexander
— como o herói do filme, finalmente realizado na Suécia
em 1985 — tenha se curado em um sentido mais significativo:
não se tratava apenas de ser curado de uma doença física
(e, além do mais, fatal); tratava-se também de regeneração
espiritual, expressada na figura de uma mulher.
Curiosamente, enquanto as imagens do filme estavam sendo
concebidas, e, na verdade, durante todo o tempo em que
a primeira versão do roteiro estava sendo escrita, independentemente
do que ocorria em minha vida naquele período, os
personagens começaram  a sobressair de modo cada vez mais
claro, e a ação a se tornar progressivamente mais
estruturada e específica. Era quase que como um processo
independente invadindo minha vida. Além disso, enquanto ainda fazia Nostalgia,
não pude fugir à sensação de que o filme estava interferindo em minha vida.
No roteiro de Nostalgia, Gorchakov tinha ido para a Itália apenas por uma
breve estada, mas ficou doente e morreu por lá. Em outras
palavras, ele falhou em seu propósito de voltar à Rússia não
por vontade própria, mas por uma imposição do destino.
Eu também não imaginava que, depois de terminar Nostalgia,
eu permaneceria na Itália: mas, assim como Gorchakov,
estou sujeito a uma Vontade Superior. Um outro fato
lamentável veio acentuar esses pensamentos: a morte de Anatoli
Solonitsyn, que havia desempenhado o papel principal
em todos os meus filmes anteriores e que, eu supunha,
desempenharia o papel de Gorchakov em Nostalgia, e o de
Alexander em 0 Sacrifício. Morreu da doença de que Alexander
foi curado e que, um ano depois, iria me afligir.
Não sei o que isso significa. Apenas sei que é muito assustador,
e não tenho nenhuma dúvida de que a poesia do
filme vai se tornar uma realidade específica, de que a verdade
à qual ele se refere irá se materializar, far-se-á conhe-
cida por si mesma, e — quer eu goste ou não — irá afetar
minha vida. Uma pessoa não pode permanecer passiva depois
de ter se apoderado de verdades de tal ordem, pois elas
chegam até nós sem que o desejemos, e subvertem todas as
idéias anteriores em relação ao significado do mundo. Em
um sentido muito real, a pessoa se divide, consciente de que
é responsável por outros; é um instrumento, um meio, obrigado
a viver e a agir para o bem do próximo.
Assim, Alexander Puchkin considerava que todo poeta,
todo verdadeiro artista (e eu sempre me considerei mais poeta
que cineasta) — independentemente de querê-lo ou não —
é um profeta. Puchkin encarava a capacidade de olhar através
do tempo e predizer o futuro como um dom terrível, e o papel
que lhe coube causou-lhe indizível tormento. Ele tinha
uma posição supersticiosa em relação a sinais e augúrios.
Basta que recordemos como, quando estava correndo de
Pskov para Petersburgo no momento do Levante Decembrista,
o poeta tomou o caminho de volta porque uma lebre
havia cruzado seu caminho; aceitou a crença popular de que
isso era um presságio. Em um dos seus poemas, escreveu
sobre a tortura que sofreu por ser consciente do seu dom
da presciência, e da responsabilidade de ter sido escolhido
para poeta e profeta. Eu me esquecera das suas palavras,
mas o poema voltou-me com nova significação, quase que
como uma revelação. Sinto que a pena que escreveu esses
versos, em 1826, não era empunhada somente por Alexander
Puchkin:

“Cansado da fome espiritual
Em meio a um deserto triste meu caminho fiz,
E um anjo de seis asas veio a mim
Num lugar onde havia uma encruzilhada.
Com dedos leves como o sono
Tocou as pupilas de meus olhos
E minhas proféticas pupilas abriu
Como olhos de águia assustada.
Quando seus dedos tocaram meus ouvidos,
Estes se encheram de rugidos e clangores
E ouvi o tremor do céu
E o vôo do anjo da montanha
E animais marinhos nas profundezas
E crescer a videira do vale.
E, então, pressionou-me a boca
E arrancou-me a língua pecador a,
E toda a sua malícia e palavras vãs,
E tomando a língua de uma sábia serpente
Introduziu-a em minha boca gelada
Com sua mão direita encarnada.
Então, com sua espada, abriu meu peito
E arrancou-me o coração fremente,
E no vazio de meu peito colocou
Um pedaço de carvão em chamas.
Fiquei como um cadáver, deitado no deserto,
E ouvi a voz de Deus clamar:
"Levanta, profeta, e vê e ouve,
Sê portador da minha vontade
Atravessa terras e mares
E incendeia o coração dos homens com o verbo."

O Sacrifício tem, fundamentalmente, a mesma índole que
meus filmes anteriores, mas é diferente no sentido de que
coloquei a ênfase poética deliberadamente sobre o desenvolvimento
dramático. Em certo sentido, meus filmes mais recentes
têm sido impressionistas quanto à estrutura: os
episódios — com raras exceções — foram tirados da vida
cotidiana e, por isso, vão ao encontro dos espectadores em
sua totalidade. Ao trabalhar em meu mais recente filme, não
procurei simplesmente desenvolver os episódios à luz da minha
própria vivência e das regras da estrutura dramática,
mas também procurei dar ao filme a forma de um todo poético
no qual todos os episódios estivessem ligados harmoniosamente
— algo que me preocupara bem menos em filmes
anteriores. Como resultado, a estrutura geral de 0 Sacrifício
tornou-se mais complexa e tomou a forma de uma parábola
poética. Em Nostalgia praticamente não há desenvolvimento
dramático, exceto a briga com Eugenia, a auto-imolação
de Domenico e as três tentativas de Gorchakov para atravessar
o poço com a vela; em 0 Sacrifício, ao contrário, o
conflito entre os personagens atinge um ponto em que eles
precisam agir. Tanto Domenico quanto Alexander estão
prontos para a ação, e a sua disposição de agir nasce do pressentimento
de transformação iminente. Ambos trazem a
marca do sacrifício, e cada um faz de si mesmo uma oblação.
A diferença é que o ato de Domenico não produz resultados
palpáveis.
Alexander, um ator que abandonou os palcos, está perpetuamente
esmagado pela depressão. Tudo enche-o de cansaço:
as pressões da mudança, a discórdia na família, e sua
percepção instintiva da ameaça representada pelo progresso
inexorável da tecnologia. Ele chegou ao ponto de odiar
o vazio do discurso humano, do qual procura fugir adotando
um silêncio no qual espera encontrar a paz. Alexander
oferece ao público a possibilidade de participar do seu ato
de sacrifício e de ser influenciado por seus resultados. (Não,
espero, no sentido daquela "participação do público", tão
comum entre diretores tanto na União Soviética quanto nos
Estados Unidos — e, por conseqüência, na Europa também
— e que se tornou uma das duas principais tendências do
cinema atual — sendo a outra denominada "cinema poético",
onde tudo é deliberadamente incompreensível, e o diretor
precisa elaborar explicações para o que fez.)
A metáfora do filme é coerente com a ação e não precisa
de esclarecimento. Eu sabia que o filme estaria aberto a várias
interpretações, mas evitei deliberadamente indicar conclusões
específicas, pois achei que o público deveria
encontrá-las de modo independente. Na verdade, era minha
intenção provocar reações diferentes. Naturalmente, tenho
minhas próprias opiniões acerca do filme, e acho que
a pessoa que for vê-lo estará capacitada para interpretar os
acontecimentos que ele retrata e decidir-se quanto às várias
seqüências que o compõem e quanto às suas contradições.
Alexander volta-se para Deus em oração. Em seguida, resolve
romper com sua vida, tal como até então a vivera; destrói
todas as ligações com o passado, não deixando nenhuma
possibilidade de volta, destrói sua casa, separa-se do filho
a quem ama acima de tudo. E então, cai em silêncio, num
comentário final sobre a desvalorização das palavras no mundo
moderno. Pode ser que pessoas religiosas vejam nas ações
que se seguem à oração a resposta de Deus à pergunta do
homem "O que poderia ser feito para evitar um desastre
nuclear?" — isto é, recorrer a Deus. Pode ser que quem
tenha um elevado senso do sobrenatural interprete o encontro
com a feiticeira, Maria, como a cena central que explica tudo
o que ocorre posteriormente. Sem dúvida, haverá outros
para quem todos os acontecimentos do filme não
representarão mais que os frutos de uma imaginação doentia,
já que, na realidade, não está ocorrendo nenhuma guerra
nuclear.
Nenhuma dessas reações tem qualquer relação com a realidade
apresentada no filme. A primeira e a última cena —
o ato de regar a árvore infrutífera, que, para mim, é um
símbolo de fé — são os pontos altos entre acontecimentos
que se desenrolam com intensidade cada vez maior. Ao final
do filme, Alexander não apenas prova que está certo e
demonstra que está preparado para se elevar extraordinariamente,
mas também o médico, que, de início, surge como
um personagem simplista, cheio de saúde e inteiramente
dedicado à família de Alexander, transforma-se de tal forma
que é capaz de sentir e compreender a atmosfera venenosa
que domina a família, e o seu efeito letal. Ele se mostra
capaz não apenas de expressar uma opinião própria, mas
também de a romper com o que agora considera desprezível,
e emigrar para a Austrália.
Em conseqüência do que ocorre, desenvolve-se uma nova
intimidade entre Adelaide, a esposa excêntrica de Alexander,
e a criada, Júlia; um relacionamento humano desse
tipo é algo completamente novo para Adelaide. Durante quase
todo o filme, sua função é invariavelmente trágica: ela
esposa de Alexander. sufoca tudo que se lhe apresente com a menor
aspiração à individualidade, à afirmação da personalidade; esmaga a tudo e
a todos, inclusive o marido — sem querer agir dessa forma por um instante sequer.
Ela é quase incapaz de refletir.
Sofre em razão da sua própria falta de espiritualidade,
mas ao mesmo tempo, é esse sofrimento que lhe confere
o poder destrutivo, tão incontrolável em seus efeitos quanto
uma explosão nuclear. Ela é uma das causas da tragédia
de Alexander. O seu interesse pelas outras pessoas está em
proporção inversa aos seus instintos agressivos, à sua paixão
pela auto-afirmação. Sua capacidade de apreender a verdade
é limitada demais para lhe permitir entender um outro
mundo, o mundo do próximo. Além disso, mesmo que pu-
desse perceber esse mundo, ela não teria capacidade ou disposição
para entrar nele.
Maria é a antítese de Adelaide: modesta, tímida, permanentemente
insegura. No início do filme, algo semelhante à amizade seria
impensável entre ela e o dono da casa; as diferenças
que os separam são muito grandes.
Entretanto, numa determinada noite, eles se encontram, e essa noite é
o momento decisivo na vida de Alexander. Diante da catástrofe
iminente, ele percebe o amor dessa mulher simples como
uma dádiva divina, como uma justificação de toda a sua
vida. O milagre que surpreende Alexander transfigura-o.
Não foi nada fácil encontrar protagonistas para os oito papéis,
mas acho que cada membro do elenco final está perfeitamente
identificado com seu personagem e suas ações.
Não tivemos problemas técnicos ou de qualquer outro tipo
durante a filmagem, até um momento, perto do final,
quando todos os nossos esforços pareciam prestes a resultar
em nada. De repente, na cena em que Alexander põe fogo
à casa — uma tomada única com seis minutos e meio de
duração — a câmera quebrou. Só fomos perceber isso quando
a construção já estava totalmente em chamas, ardendo
até o fim diante dos nossos olhos. Não pudemos apagar o
fogo, nem pudemos fazer uma única tomada; quatro meses
de trabalho árduo e dispendioso por nada.
Então, numa questão de dias, construiu-se uma nova casa,
idêntica à primeira. Parecia um milagre, e isso prova
o que as pessoas são capazes de fazer quando movidas pela
convicção — e não somente as pessoas, mas os próprios
produtores, os super-homens.
Ao filmarmos essa cena pela segunda vez ficamos muito
apreensivos, até que ambas as câmeras foram desligadas —
uma pelo assistente de câmera, a outra pelo profundamente
ansioso Sven Nikvist, aquele brilhante mestre da iluminação.
Então, relaxamos; quase todos nós chorávamos como
crianças, e, quando nos abraçamos, percebi como era íntimo
e indissolúvel o laço que unia nossa equipe.
Talvez outras cenas — as sequências de sonho ou as três
cenas da árvore estéril — sejam mais significativas a partir
de determinado ponto de vista psicológico do que aquela em
que Alexander incendeia a casa no sombrio cumprimento
da sua promessa. Mas, desde o início, eu estava determinado
a concentrar os sentimentos do espectador no comportamento,
à primeira vista inteiramente absurdo, de alguém
que considera indigno — e, portanto, realmente pecaminoso
— tudo o que não seja uma necessidade vital.
Eu queria que aqueles que assistissem ao filme fossem diretamente
afetados pela situação de Alexander, que sentissem
sua nova vida e o tempo distorcido da sua percepção.
Talvez seja por isso que a cena do incêndio dure pelo menos
seis minutos completos; não poderia ter sido de outra
forma.
"No início era o Verbo, mas você está silencioso como
um salmão mudo", diz Alexander ao filho no começo do
filme. O garoto está se recuperando de uma operação de garganta
e está proibido de falar. Ouve em silêncio enquanto
o pai conta-lhe a história da árvore estéril. Mais tarde, horrorizado
com as notícias de desastre iminente, o próprio Alexander
faz um voto de silêncio: "... emudecerei, nunca mais
direi nenhuma palavra a ninguém, renunciarei a todos os
laços que me ligam à minha vida. Senhor, ajudai-me a cumprir
esta promessa."
Deus atende à prece de Alexander, e as conseqüências são
simultaneamente terríveis e agradáveis. Por um lado, o resultado
prático é que Alexander rompe irrevogavelmente com
o mundo e suas leis, leis que até então aceitara como suas.
Ao agir assim, não só perde sua família mas também —
e, para os que o rodeiam, esta é a mais assustadora de todas
as coisas — coloca-se ao largo de todas as normas aceitas.
E, contudo, é exatamente por isso que encaro Alexander como
um homem escolhido por Deus. Ele é capaz de pressentir
o perigo, a força destrutiva que impele o mecanismo da
sociedade moderna rumo ao abismo. E deve-se tirar a máscara
para que a humanidade seja salva.
Até certo ponto, os outros participantes também podem
ser encarados como escolhidos e chamados por Deus. Otto,
com seu dom de prognosticar, é um colecionador, como diz,
de acontecimentos inexplicáveis e misteriosos. Ninguém conhece
seu passado ou sabe como e quando chegou na aldeia
onde acontecem tantas coisas estranhas.
Para o filhinho de Alexander, assim como para a feiticeira,
Maria, o mundo está cheio de prodígios impenetráveis,
pois ambos se movem num universo de imaginação, não de
"realidade". Contrariamente aos empiristas e aos pragmatistas,
não acreditam somente no que podem tocar, mas, antes,
percebem a verdade com o olho da mente. Nada do que
fazem conforma-se aos critérios "normais" de comportamento.
São possuídos pelo dom que era conhecido na antiga
Rússia como a marca do "tolo sagrado", aquele peregrino
ou mendigo andrajoso cuja simples presença afetava pessoas
que levavam vidas "normais", e cujos presságios e autonegação
estavam sempre em contradição com as idéias e regras
estabelecidas do mundo como um todo.
Atualmente, os membros da sociedade civilizada, a grande
maioria sem fé, adotam uma perspectiva completamente positivista,
mas mesmo os positivistas não conseguem perceber o absurdo da tese
marxista de que o Universo é eterno ao passo que a Terra é simplesmente
fortuita. O homem contemporâneo é incapaz de ansiar pelo inesperado,
por acontecimentos anômalos que não correspondem à lógica "normal";
não está preparado nem para admitir a idéia de fenômenos não programados,
quanto mais para acreditar em seu significado sobrenatural.
O vazio espiritual resultante  deveria ser suficiente para fazê-lo
parar e pensar. Em primeiro lugar, porém,  ele tem de entender que o
caminho da sua vida não é julgado por padrões
humanos, mas está nas mãos do Criador, em cujo arbítrio deve confiar.
Uma das maiores tragédias do mundo moderno é o fato de que os problemas
morais e os inter-relacionamentos éticos estão fora de moda; foram colocados
em posição secundária e despertam pouca atenção. Muitos produtores fogem
dos filmes de autor porque encaram o cinema não como arte,
mas como um meio de fazer dinheiro; a tira de celuloide
transforma-se em mercadoria.
Nesse sentido, 0 Sacrifício é, entre outras coisas, um repúdio
do cinema comercial. Meu filme não pretende sustentar
ou refutar idéias específicas ou defender este ou aquele
modo de vida. O que eu quis foi propor questões e demonstrar
problemas que vão diretamente ao núcleo das nossas
vidas e, desse modo, levar o. espectador de volta às fontes
dormentes e ressequidas da nossa existência. Figuras, imagens
visuais, estão muito mais capacitadas para realizar essa
finalidade do que quaisquer palavras, particularmente
hoje, quando o mundo perdeu todo o mistério e magia, e
falar tornou-se mero palavrório — vazio de significado, como
observa Alexander. Estamos sendo sufocados por uma
avalanche de informações, contudo, ao mesmo tempo, nossos
sentimentos permanecem intocados pelas mensagens de
suprema importância que poderiam mudar nossas vidas.
Em nosso mundo, há uma divisão entre o bem e o mal.
entre a espiritualidade e o pragmatismo. Nosso mundo humano
é construído, modelado, de acordo com leis materiais,
pois o homem atribuiu à sua sociedade as formas da maté-
ria morta e assumiu suas leis para si próprio. Por isso, ele
não acredita no espírito e repudia Deus. Vive apenas de pão.
Gomo pode ver o Espírito, o Milagre, Deus, se essas entidades
não cabem na estrutura, se são supérfluas a partir de
seu ponto de vista? E, contudo, ocorrem fatos miraculosos
mesmo no domínio do empírico — na física. E, como sabemos,
a grande maioria dos físicos contemporâneos eminentes,
por alguma razão, realmente acreditam em Deus.
Certa vez, conversei sobre esse assunto com o falecido físico
soviético Lev Landau. O cenário foi urna praia pedregosa
na Criméia. "O que é que o senhor acha", perguntei, "Deus existe
ou não?'' Seguiu-se uma pausa de mais ou menos três minutos.
Então, ele me olhou com ar de desamparo.
"Creio que sim." Naquela época, eu era apenas um rapaz
queimado de sol, completamente desconhecido, filho do célebre poeta Arseni
Tarkovski: um joão-ninguém, apenas um filho. Foi a
primeira e a última vez que vi Eandau, um encontro único,
casual; daí, tal sinceridade da parte do vencedor soviético
do Prêmio Nobel.
Será que o homem tem alguma esperança de sobrevivência
diante dos claros sinais de silêncio apocalíptico iminente?
Talvez uma resposta para essa pergunta deva ser
encontrada na lenda da árvore ressequida, desprovida da
água da vida, na qual baseei esse filme que tem tamanha
importância em minha biografia artística: o Monge, passo
após passo e balde após balde, sobe a colina para regar a
árvore seca, acreditando implicitamente que seu ato era necessário
e em nenhum momento duvidando da sua crença
no poder milagroso da sua fé em Deus. Viveu para assistir
ao Milagre: certa manhã, a árvore explode em vida, os ramos
cobertos de folhas novas. E esse "milagre", sem dúvida,
nada mais é que a verdade.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

FICHÁRIO - 1: ASPECTOS DA NOUVELLE VAGUE (*relacionados ao elemento surpresa, ainda em pesquisa)


O surgimento da Nouvelle Vague Francesa abriu espaço para redefinir a linguagem cinematográfica em voga, até então. Foi uma abertura de redefinição estética radical.



- “É consenso que a rede de filmes, artigos e cineclubes da Nouvelle Vague tenha criado condições para um momento de redefinição radical de padrões e maneiras de filmar e – também – compreender cinema”.

- "Esse novo olhar e maneira de se fazer cinema desencadeada pelos jovens turcos “afirmou, no âmbito local, a ruptura com o cinema de estúdios francês e, no plano da história das formas, a consciência avançada da representação. (...). Laboratório por excelência de uma ESTÉTICA DO FRAGMENTO, da incorporação do ACASO DA FILMAGEM, da polifonia narrativa e de uso de formas até então atribuídas ao documentário, às Artes Visuais, ao ensaio e à Literatura, a Nouvelle Vague fez chegar ao cinema (...) uma observação autocrítica dos imaginários urbanos, antropologia radical oposta à vocação de ‘vulgaridade e comércio’ do cinema e das mitologias da sociedade de consumo."

- "(...) a Nouvelle Vague acabou por sintetizar uma original incorporação crítica da cultura material e imaterial ao redor, da cultura atual e dos museus. (...) A Nouvelle Vague foi um movimento de juventude, protagonizado por uma geração que começou a escrever e fazer filmes quase adolescente, com a responsabilidade política dos ‘vinte e poucos anos’, mas com um raro acumulo cultural para jovens dessa idade."

- "Uma das mais vigorosas ideias da Nouvelle Vague foi considerar o museu, a cinemateca, como locus privilegiado para o processo criativo de um filme. Uma ideia transformadora, porque até então, o cinema era pensado em repartições (estúdios) e com base em uma noção de linguagem sem tradição."

- "A Nouvelle Vague foi o primeiro movimento cinematográfico produzido com base em um interesse pela memória do cinema. Foi esse acesso a tal tradição que permitiu nascer, nos artigos dos futuros cineastas, a ideia cara – e clara – de RUPTURA, de novidade a afirmar."

- "Na verdade o interesse pelos autores americanos – pedra de toque da ‘política dos autores’ dos jovens críticos – seria muitas vezes mediado pelos valores e conceitos da arte moderna: a DESCONTINUIDADE, a incorporação do ACASO e da realidade documental, a valorização da montagem."

- "Os artigos que Truffaut e Godard escrevem têm duas frentes: a recusa do que é produzido na França (salvo raras exceções) e o cinema americano como foco privilegiado para a BUSCA DE AUTORES que, de certa forma, DRIBLAM O SISTEMA E SE IMPÕEM COMO ARTISTAS coerentes, capazes de CONSTRUIR UMA ESCRITURA. Não por acaso, a noção de estilo será muito mais importante para a Nouvelle vague que para André Bazin e as gerações críticas anteriores."

- "O autodidatismo, a eleição de um novo espaço de difusão do saber – o cinema – e a aposta no cineclubismo com ‘escola’ explicitam o modo de agir de Bazin: tanto sua preferencia pelo ensaio como a forma da escrita e as diferenças com as exigências do mundo acadêmico.”
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MANEVY, Alfredo – Nouvelle Vague, P: 221-233, in: MASCARELLO, Fernando (org) - Historia do Cinema Mundial, Campinas, SP: Papirus, 2006 – (Coleção Campo Imagético). 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

SOCIALISMO, de Jean-Luc Godard


O filme é entrecortado por vários acontecimentos, diria melhor: vários retalhos de momentos variados de vida de pessoas quaisquer. Há, porém, um elo entre essa balburdia de Babel, que pode dar um sentido ao quebra-cabeça: um navio transatlântico navega pelo filme inteiro, com seus tripulantes ora conversando, ora lembrando-se de algo, ora apenas olhando a calmaria ou fúria do mar. As águas correndo remetem o escorrer do tempo.

A impressão que eu tive do filme com esses recortes e diálogos e cenas meio ‘desarrumadas’, é que se trata dos pensamentos que escapam das mentes dos passageiros a bordo do navio. Veio-me a lembrança de outro filme que se passa em grande parte dentro de uma nau –  ‘E La nave Vá’, de Frederico Fellini, um de meus filmes favoritos pela poesia, fluidez onírica e delicadeza da obra; tive o privilégio de assisti-lo no cinema quando mocinha, em sessão especial certa vez! – entretanto, o transatlântico de ‘Socialismo’ deixa escapar cenas e as vozes aleatoriamente, invadindo imagens referentes a outros personagens e/ou acontecimentos, digamos assim. Sugerindo que tudo está interligado, pois estamos no mesmo barco, afinal... sim, os passageiros do transatlântico do filme e quem os acompanha olhando o filme.

Em alguns momentos identifiquei-me com o garoto que vaga livremente a bordo do navio, e explora tudo sem qualquer preocupação ou prisão. Ele também em algumas passagens funciona como elemento de ligação. Aqui igualmente se registra a pegada inconfundível da Nouvelle Vague, da qual o próprio Godard foi um dos pais; as características mais evidentes: a não-linearidade dos acontecimentos; vozes em off; letreiros na tela preta entrecortando cenas; assuntos políticos inerentes à contemporaneidade.

Outra coisa que incomode talvez o espectador que não tem o olhar educado para diferentes estéticas e propostas de filmes menos compromissados com o estilo clássico de montagem e efeito de sonoplastia, por exemplo, pode se sentir deveras agastado ao assistir ‘Socialismo’. Acredito que Godard joga com a sonorização do filme para ‘sacudir’ mesmo o espectador na poltrona de cinema... sugerindo que ele não se acomode, não durma, tenha a experiência sensitiva não apenas através do olhar sincronizado aos ouvidos, pois na vida as coisas surgem  em velocidades e sintonias diferentes que necessitam uma percepção bem mais abrangente, e quem está apto a captar essas nuances dos acontecimentos cotidianos, está mais apto a safar-se na seleção natural da evolução intelectual e dos sentidos.

Esse raciocínio pode ser captado com algumas falas em off: “Sabe-se que quando alguém vai para o Sul, a latitude torna-se negativa. E tudo o que resta é ir ao Norte, querida alma, querida amiga”/ “Estamos encarando uma espécie de zero. Certa vez encontrei o Nada. E era muito maior do que alguém possa imaginar”/ “Todo movimento em uma superfície plana que não é ditado por uma necessidade física, resulta em uma afirmação espacial dele mesmo, seja ao construir um Império, ou ao se fazer turismo”/ “Qualquer um pode fazer algo porque Deus não está aqui”.

Outro recurso estético, que também acredito não estar à toa no filme, traduz-se em partes de imagens tão saturadas e/ou com baixa definição... também convidando o espectador a (re)educar seu olhar não somente para o filme, como também para a vida; como se Godard transferisse para a tela de cinema a impressão de olhar turvo das pessoas que muitas vezes veem algo mas não enxergam em sua totalidade, parece que a vista está turva diante de acontecimentos do dia-a-dia. Godard já sem a menor preocupação em agradar a massa, é direto e cru em suas assertivas: quem alcançar, alcança... quem não conseguiu ou desiste ou corre atrás para compreender o que seu filme diz. E diz tanta coisa ao mesmo tempo.


Godard chega ao refinamento da linguagem cinematográfica, dispensa os simbolismos e associações mais evidentes que o publico já está acostumado e educado para detectar nos filmes; ele discorre freneticamente nas informações audiovisuais; querendo retratar o ritmo de nosso tempo pós-contemporâneo (talvez). Aqui também me vem algo na cabeça que se relaciona com os recortes e falatórios e imagens no decorrer do filme: que tudo está interligado, porém igualmente em constante transformação. A vida não é algo fechado, é dinâmica, os rumos podem ser trasladados a qualquer momento; basta querer ir, arriscar-se... a maré é avassaladora.

“Abandonar o navio...”. Voltando às minhas impressões sobre o filme de Godard. Uma de minhas cenas favoritas é a passagem de dois gatinhos miando... que amor! – Adoro gatos, já tive muitos de estimação! E tenho uma que está sempre comigo quando eu estou em casa –  podemos pegar esta cena e associar ao dilema da (falta de) comunicação adequada com o outro... o que eu falo e o que o outro compreende... as deficiências da linguagem.

Na cena os gatinhos miam entre si parecendo até uma conversação entre eles, em seguida uma moça aparece vendo essas imagens em seu computador e repete a onomatopeia ‘miau’ em forte dilema entre o que comumente se encerra para compreensão desta grafia. Verifica-se que há diferenças daquele som linguístico felino sintetizado pela gramática humana. O auditivo difere da palavra escrita e pronunciada... não existe apenas o ‘miau’, há também o ‘ron-ron’, o ‘fru-fru’, o ‘hmm’ como representante fonético do felino para a língua humana. Desse modo há também as diferentes compreensões de enunciados quando conversamos com um interlocutor.

A questão é: eu ou você estamos realmente abertos e interessados a escutar o que o outro tem a nos dizer? Seguindo a mesma cena: a moça diz para alguém fora de plano que “ ’Miau’ é como os antigos egípcios chamavam seus gatos”. Entretanto, seu interlocutor nem liga para o que a moça diz e ainda pede para ela ficar calada... Vivemos numa sociedade de imposições, tirania, dominação, subjugação do semelhante. Onde quem grita mais, vence e dane-se o modo particular de cada um em manifestar suas ideias, em manifestar-se como verdadeiramente é, em manifestar suas vontades. Tudo é tragado pelo comportamento em serie e de intransigências.

Aí eu volto novamente ao que coloquei anteriormente [na vida as coisas surgem  em velocidades e sintonias diferentes que necessitam uma percepção bem mais abrangente]. A linguagem humana é deficiente em seu alcance de transmissão, quanto de recepção. Precisamos de variados suportes para dizer tudo o que pensamos ou sentimos. O dialogo e o entendimento é algo comparável ao compasso de musica: deve ter tempo, ritmo, métrica, harmonia... e tais elementos somente são alcançados quando se escuta a si e ao outro com igual interesse e atenção.

Na mesma cena segue-se um diálogo entre a moça que fala a palavra ‘miau’ e outro interlocutor, agora uma voz feminina que fala em alemão, em resposta da moça do ‘miau’ que fala em francês. Em seguida entra uma filmagem antiga de combate, a narração fala sobre a guerra entre franceses e alemães... a cena é interrompida por outra em terrível definição de imagem, e há um dialogo entre um velho e uma mocinha numa festa:

VELHO: “Você sabe o que significa 'kamikaze' em japonês?”

MOCINHA: “A divindade do vento?”

VELHO: “exato.”

Acho que dentre as várias coisas que o filme ‘Socialismo’ mostra e refere-se, eu escolhi como tema principal, que segundo o meu entendimento é a (in)comunicabilidade e dificuldade que os seres humanos têm de se relacionar com as diferenças: os diversos cacos de imagens e falas nos remete às simples ações de boa-vontade: olhe e veja; escute e fale; ame-se e respeite o próximo igualmente. A própria estrutura do filme nos remete a essa falta de compreensão das coisas, na dificuldade de ver e enxergar de fato; da dificuldade de ouvir o próximo. A estrutura como o filme se mostra adere também seu conteúdo à forma; percebi essa aderência de alma e aparência semelhante ao encontrado no filme POCILGA, de Pier Paolo Pasolini.

Godard nos convida a simplificação das coisas, não à compreensão simplória das mesmas, e perambula sobre isso em seu filme através de diversas maneiras de tocar no assunto da comunicação como chave-mestra para a Paz no macro e micro mundo das pessoas; o diretor utiliza-se da História, da Sociologia, da Psicologia, do Existencialismo, da Economia Mundial,  da Antropologia, da Filosofia para nos dizer isso. Adverte-nos em diversas passagens do filme que o quê importa é o sujeito e não suas posses e poses. O resgate da valorização da pessoa e não do objeto que a orna. Há uma fala interessante ao longo do filme que ilustra isso, e ainda faz um profundo resgate histórico num resumo dos fatos incrível nesse dialogo breve:

HOMEM UM: “O dinheiro foi inventado para que as pessoas não tivessem que se olhar nos olhos”.

HOMEM DOIS: “Então, de volta ao Zero, meu amigo”.

HOMEM UM: “Felizmente, foram os árabes que o inventaram. Não temos que pagá-los pelo copyright.”

HOMEM DOIS: “Normal: os números negativos foram inventados na Índia.”

HOMEM UM: “Eles fizeram alguma coisa na Arábia, antes de chegarem à Itália. Fibonacci foi o primeiro a utilizá-los, quando os britânicos deixaram Israel... O quê, exatamente, você fez com o dinheiro do Banco da Palestina?”


O dinheiro – riqueza e poder – Justamente a mola-mestra do mundo: tanto constrói como destrói, dependendo da sua aplicabilidade de valores. (...) Um fato interessante que eu notei no filme de Godard. As cenas de pior definição visual normalmente são as das festas... será que ele sugere que o velho ‘ Pão e Circo’ distrai a massa dos assuntos mais sérios como a politica, a economia, a educação, a melhor distribuição per capita de renda entre os Países? E as águas rolam... com tubarões acuando cardumes de peixes menores.

Uma sensação boa que o filme de Godard me deixou, foi por causa de alguns enquadramentos como se a câmera apenas estivesse observando o cotidiano das pessoas dentro do navio. Em algumas cenas os indivíduos não representam, apenas são o que são. E o enquadramento da câmera vem de um ambiente de fora de onde essas pessoas estão. O olhar voyeur do cineasta torna seu filme cheio de quebra-cabeças algo mais próximo da realidade, pois o dia-dia é também picotado em menor proporção de informações e pensamentos, mas também nos é assimilado dessa forma, se formos observar.

Deixei-me conduzir de toda informação possível que consegui apreender do filme. Fiquei bastante aberta ao mesmo, porém também não o assisti de forma linear, dei pausa e fui fazer outras coisas, fui assistindo-o aos pedaços... e isso não faria a menor diferença mesmo! “A mente tira da matéria percepções que transforma em seu alimento e o devolve em forma de movimento no qual expressa sua liberdade.”, eis uma das falas mais belas do filme em minha opinião, na voz do menino que aparece vez por outra sempre livre explorando o espaço do navio, e que bem no inicio do filme um velho o chama de ‘criança encapetada’ por ele não seguir as regras de ninguém e ir saciando livremente sua curiosidade de explorador.

Lá pelas tantas eu já estava curiosa para saber aonde o transatlântico iria aportar de vez. “As ideias nos separam. Mas os sonhos nos aproximam...”, outra bela frase dita em ‘Socialismo’.

“Mostrar, antes de tudo. Mostrar o que é possível. Isso é tudo.”

“O quê, por exemplo?”

“Não falar sobre o invisível. Mostrá-lo.”

Não perder-se em elucubrações sobre a vida, e sim vivê-la. Conseguir o equilíbrio entre conhecimento adquirido nos livros e a praticidade da convivência coletiva... evitar tornar-se arrogante e apartado da civilização. Ter bom senso e interatividade com seu semelhante: escutá-lo, compreendê-lo e fazer-se compreender; pois o conhecimento alarga as percepções e a priori, deveria libertar o ser das armadilhas sociais. O conhecimento deveria deixar-nos mais humildes do que arrogantes, (em minha opinião).

“O sonho do Estado é ser sozinho. O sonho do indivíduo é tornar-se dois.”

O tempo é um mistério encerrado através da maquina inventada pelo homem – o relógio –  que ao mesmo instante aprisiona as horas corridas manifestando a incapacidade do homem em detê-las. O relógio ergue-se como uma pequena antítese de si mesmo. A negação da existência que existe através do tempo contado e morto assim que nasce através dos ponteiros. Nascemos, e a única certeza que sabemos é que iremos prescindir do tempo que se escorre. Daí muitas passagens da segunda parte do filme de Godard – pois em minha opinião ‘Socialismo’ tem três momentos –  discorre sobre as decisões que cada um toma a partir do momento que se descobre a si mesmo.

 “A liberdade é cara...”
“Que horas são?”
“Nada mais que a hora certa”.

“Quando a lei não é justa, a justiça passa por cima da lei”.
Entretanto, do pó viemos e ao pó retornaremos. ‘Socialismo’ de Jean-Luc Godard não é um filme fácil, traz inúmeras possibilidades de compreensão, assim como a vida nos revela variadas formas de vivê-la. A escolha e conhecimento para interpretá-la são de cada um.


Katiuscia de Sá
29 e 30 de outubro de 2012.