A água
permeando de ponta a ponta em horizontal, ora represada, ora aos pingos, ora em
correntezas... indicativo de pureza, renovação, redenção ao passo acelerado no
interior da estória. Uma casa com seu interior em ruinas, conotativo à
transformação que ocorre nas personagens do poeta russo “Andrei Gorchakov” e de
“Domenico”, o louco de Termas Vignoni. Ambos, aliteração do homem em ressureição
pela força de confronto de seus próprios fantasmas – o medo da morte e de nunca
mais poder resgatar suas memórias de infâncias, da terra natal, etc. Podemos
inferir também o medo da perda da luz interior de si mesmo, pelo fato de não
saberem mais quem são e porque estão no mundo.
A primeira
personagem (o poeta russo) afogada em existencialismos, como se condensando em
si toda uma civilização magoada e ainda sobre os efeitos da Guerra Fria, (e
mais especificamente à própria sensação do cineasta Tarkovski, na época exilado
na Itália após sair de sua terra Natal, a Rússia), cujos confrontos internos
com uma nova cultura resumida na figura da atriz italiana “Eugenia” que acompanha “Gorchakov”, cujos confrontos vão
crescendo como o Bolero de Ravel – aos compassos retumbantes, entre ela e o
poeta, revelam-se como uma fina costura entre o real e o imaginário – o sonho
de “Eugenia” que elimina qualquer possibilidade de encontro entre o poeta e
essa nova terra que o acolhe.
Eu
mesmo passei por algo semelhante quando me ausentei da minha pátria durante
algum tempo: meu encontro com um outro mundo e com uma outra cultura, e o
princípio de uma ligação com eles provocaram uma irritação, quase
imperceptível, mas incurável — algo como um amor não correspondido, um sintoma
da impossibilidade de tentar apreender o que é ilimitado, ou de unir o que não
pode ser unido; um indicador de quão limitada, quão restrita, deve ser a nossa
experiência na terra; como um sinal das limitações que predeterminam a nossa
vida, impostas não por circunstâncias exteriores (com as quais seria fácil
lidar!) mas pelos nossos próprios "tabus" interiores... (TARKOVSKI,
Andrei. “Esculpir o Tempo”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.243).
E como é de se
esperar, o traço característico de Andrei Tarkovski, em misturar sonho e
realidade, realidade e sobrenatural, sobrenatural e cinema é demonstrado
através da força da Natureza que sempre domesticou o homem e o ajudou a evoluir
pensando ingenuamente que era ele o dominador, quando na verdade quem dita as
regras é a força da Natureza que precisa sempre ser domada para nos adequarmos
aos nossos próprios ideais. Daí a travessia da piscina cujas “águas queimam”
ser tão importante, sem que a chama se apague... quando o homem ‘vence’ a
Natureza, ele deve morrer para juntar-se a ela. O poeta e o louco... qual a
diferença? Enquanto um realiza o ritual, o outro também queima espontaneamente
em igual beleza e força comunicativa.
“A visão se
turva. Minha força... são dois dardos adamantinos ocultos. Confundem-se o que
se ouve da casa paterna distante que respira. Os músculos duros e os gânglios
enfraquecem... como um ruído de bois no pasto,... e quando a longa noite
cai,... duas asas surgem atrás de mim. Na festa, a vela me consome. De
madrugada, recolham minha cera derretida,... e nela leiam quem chora, e quem
anda soberbo,... como dando a ultima porção de alegria,... morrer levitando
e,... por sorte, acender-se... postumamente como uma palavra”. [NOSTALGHIA/1983,
de Andrei Tarkovskij]
Como um cinema
metafisico desde sua invenção, Tarkovski preocupa-se mais em sensações do que
seguir um roteiro cadenciado por inicio/meio/fim. E nisso ele é mestre. Essa
impressão mística dos fatos cotidianos é mostrada magnificamente pelas
paisagens bucólicas do interior da Itália; pelo poder mágico das paredes de
pedra de Termas Vignoni; pela neblina que encobre e revela o ser... tudo
vagarosamente como um tempo sem tempo passando, e sim, inventado a bel vontade
dos sentimentos, da nostalgia.
Desde o inicio,
ao assistir ao filme, senti-me como quando criança que me perdia horas dentro
de mim mesma absorvendo a realidade de forma puramente sensorial... conferindo
a temperatura, as cores do dia, a velocidade do sol em revelar as sombras, no
som das aves que se confundiam ao rasgar do vento que passa por nós... Está
tudo lá; a magia do tempo capturado na película de Andrei Tarkovski em
“Nostalghia”. Cinema desse quilate é impossível passar imune. Graças a Deus
existe o poeta do audiovisual que ousa primeiro saborear-se a si mesmo para depois
morder um pedaço do mundo com sua própria fome e vontade. Seus filmes autorais
são essa fome que o cineasta teve ao longo da vida, enquanto diretor, traduzida
em suas obras belíssimas e que nos fazem pensar de maneira outra a vida que nos
escapa aos dedos.
É
preciso que eu diga que quando vi pela primeira vez todo o material filmado,
fiquei surpreso ao encontrar nele um espetáculo de absoluta melancolia. O
material era inteiramente homogêneo, tanto no tom quanto no estado mental nele
impresso. Não se tratava de uma coisa que eu houvesse decidido realizar; o que
era sintomático e singular no fenômeno diante de mim era o fato de que,
independentemente das minhas intenções teóricas específicas, a câmera obedeceu,
sobretudo ao meu estado interior durante as filmagens... (TARKOVSKI,
Andrei. “Esculpir o Tempo”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.244).
De “Nostalghia”
ainda pode-se extrair a questão da crença em Deus... quando vemos a
peregrinação de “Andrei Gorchakov” pelas igrejas observando os rituais santos –
no filme, especificamente a de Ns.ª Sr.ª do Parto... é bastante forte para essa
estória do homem que nasceu porém, se perdeu de suas origens. Sua fé naquele momento
está posta à prova. Uma busca que nem ele próprio sabe explicar, mas é de
alguém perdido à procura de sua própria luz – a da vela que precisa passar sob
as águas sem se apagar ao longo da travessia, como uma espécie de provação. Muito
bem colocado em ação (simbologia de o homem que passa pela vida e pelas agruras,
com a difícil tarefa de jamais se deixar abater e perder-se de si mesmo).
Porém a figura
do cachorro – que nas pinturas medievais era um simbolismo católico para a
ideia da fidelidade de Deus para com seus filhos. O cão está sempre perto tanto
do poeta quanto do louco, como que indicando que mesmo estando eles com sua fé
abalada, Deus está ali presente, e não faltará no momento de maior iluminação e
ascensão interior.
A questão da incomunicabilidade humana também é referenciada a todo momento em “Nostalghia”. A
alma de alguém sendo desnudada através do cinema. Tristezas e delicadezas em um
mesmo fio consumido nas chamas. “Nostalghia” é daqueles filmes que ficam
escondidos em algum lugar em nós e permanece, misturando-se às nossas próprias lembranças.
É belíssimo!
Katiuscia de Sá
09 de Março de
2014, às 00:15h
adorei a análise do filme. obrigada
ResponderExcluirObg Maria Teresa. Abç.
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