sábado, 19 de dezembro de 2015

MEU QUEIJO POR UM BEIJO: lágrimas de um amor inventado.


Com uma filmografia invejável para apenas 13 anos de uma carreira meteórica e fecunda (nada mais que 43 filmes, incluindo curtas, séries e filmes para TV’s germânicas, além de alguns trabalhos radiofônicos), a obra do diretor alemão Rainer Werner Fassbinder, que morreu precocemente aos 37 anos de idade (de overdose ou suicídio, há controvérsias...), impressiona – isto, sem falar de seu trabalho como ator e dramaturgo, cujas peças migravam diretamente à telona, com adaptações intertextuais significantes para a linguagem do cinema, as quais este artigo abordará uma delas.
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant), versa sobre a hierarquia de afetos observados em sociedade; no filme este aspecto está representado pela estilista Petra (Margit Carstensen). Nesse universo temos: a jovem Karin (Hanna Schygulla) à procura ‘de seu lugar ao sol’, por quem Petra demonstra interesse, porém a moça a desdenha, e Marlene (Irm Hermann) – a secretária da estilista, que nutre um amor não correspondido pela sua patroa, ela é notoriamente desprezada e espinhada pelo objeto de sua adoração, ficando subentendido essa repulsa pelo motivo de Marlene ser da classe proletária e não possuir valores que possam ser ‘trocados’ pelo ‘afeto’ de Petra.
O filme foi concluído em 1972 juntamente com mais dois longas do diretor (A Encruzilhada das Bestas e Uma Mulher de Negócios – cujas temáticas e abordagens são totalmente diferentes entre si. Aliás, essa é uma das marcas registradas desse artista do Novo Cinema Alemão: o experimentalismo e diversidade de estilos). Embora digam que As Lágrimas Amargas é um sugestivo recorte autobiográfico de seu autor, onde se invertem os gêneros, mudam-se nomes e as circunstancias, com uma pitada aqui e ali de subjetividade fictícia. Contavam as más línguas dos críticos de plantão, que a relação de poder observada nas ligações interpessoais do filme inspirava-se diretamente na suposta relação vivida por Fassbinder e um jovem de nome Günther,  (seu amante do momento), o próprio diretor, em entrevistas, dizia ser ele a Petra do seu filme. Assumidamente homossexual, Fassbinder evoca sua visão e experiência de mundo como temática para seus trabalhos. Demonstrados  por vias tortuosamente líricas e avassaladoramente profundas. Observamos a solidão; o medo; o desespero; pessoas “deslocadas” no mundo; o desamparo; a desumanidade; preconceitos; hipocrisias, etc., em sua obra. Para muitos críticos, As Lágrimas Amargas, dentre as demais obras do autor, é o que mais se aproxima de um “cinema gay”, pois o tema e a protagonista diretamente o são,

Em Petra von Kant, a personagem principal é uma mulher, rica e aristocrata que, mesmo que não saia nunca de seu quarto, mantém relações com Madrid, Miami e Paris. Desta forma, uma das principais características da poética fassbinderiana mostra-se evidente desde o início: a alternância entre os subúrbios de classe baixa com o meio exclusivo da classe alta, assim como o revezamento dos arquétipos masculino e feminino – segundo Robert Katz, biógrafo de Fassbinder, o filme trata-se da relação entre o cineasta alemão e Günther Kaufmann transformado em um caso de amor lésbico, sendo assim, uma de suas obras mais autobiográficas. [MILAN, 2014].

Com diálogos repletos de amarguras e de existencialismo, As Lágrimas Amargas evoca algo semelhante recorrente nas obras do inglês Willian Shakespeare: a condição humana. Observamos também um toque marxista permeando as relações entre as personagens principais: Petra, Marlene e a jovem Karin por quem a estilista se apaixona. Sem ter muito sucesso com a jovem, ela reage negativamente ao constar sua incapacidade de amar sem interesse, e como consequência a protagonista entrega-se a um eterno lamento e amargura pelo mundo, emergindo um choque consensual  entre seus recém-criados valores internos e a ditadura competitiva que o mundo moderno impõe às pessoas. Desse modo, Fassbinder coloca que essa barganha entre amor e poder dificilmente trará felicidade aos participantes, assim o diretor critica o modelo capitalista em que a sociedade ocidental está submetida cegamente, onde a banalização das emoções impede de as pessoas serem ‘naturais’, e como consequência direta disto, as virtudes são vistas como um empecilho ao sucesso de acordo com os moldes que esta sociedade de consumo impõe. Como recurso cênico, o diretor alemão mostra-nos esse sedutor jogo de interesses através das vestimentas, das poses e olhares vazios das personagens ao dialogarem entre si. Faz parecer uma dança coreografada executada friamente entre Petra e Karin, através da lente de uma câmera distante e igualmente analítica dos planos. Observamos o talento individual conflituoso entre as três personagens principais mostrado no filme de Fassbinder como um exemplo contrario daquilo que Thomas Hobbes referendou em seu Leviatã:

Por virtudes intelectuais sempre se entendem aquelas capacidades do espírito que os homens elogiam, valorizam e desejariam possuir em si mesmos; e vulgarmente recebem o nome de talento natural, embora a mesma palavra talento também seja usada para distinguir das outras uma certa capacidade. Estas virtudes são de duas espécies: naturais e adquiridas. Por naturais não entendo as que um homem possui de nascença, pois isso há apenas sensação; pela qual os homens diferem tão pouco uns dos outros, assim pomo dos animais, que não merece ser incluída entre as virtudes. Quero referir-me àquele talento que se adquire apenas através da prática e da experiência, sem método, cultura ou instrução. Este talento natural consiste principalmente em duas coisas: celeridade da imaginação (isto é, rapidez na passagem de um pensamento a outro) e firmeza de direção para um fim escolhido. (...) Esta diferença de rapidez é causada pela diferença das paixões dos homens, que gostam e detestam, uns de uma coisa, outros de outra. Em consequência do que os pensamentos de alguns homens seguem uma direção, e os de outros outra, e retêm e observam diversamente as coisas que passam pela imaginação de cala um. [HOBBES, 1651, p.28-29]

Os truques de câmera evidenciam esse ‘atropelo’ dos sentimentos personificados nos objetos sem importância acumulados no cenário. Sempre há manequins espalhados; uma parede para atrapalhar a captura da imagem; uma porta atravessada por alguma parte do cenário dificultando a visão ou deixando-a parcialmente observável (eis aí os espaços para as escolhas das quais se refere Thomas Hobbes citado acima). As próprias personagens agem com artificialidade, evidenciando o jogo corporal e imagético de suas intensões em querer algo por trás de cada gesto e fala. A única que escapa desse balé vazio é Marlene com sua subserviência muda. A atriz Irm Hermann quem a interpreta dá um banho de economia e contensão em seu trabalho de atuação, sem ser excessiva e cair no visual kitsch das demais personagens da trama. A sobriedade dela é observada através de suas roupas sempre de cor neutra, enquanto às de Petra e Karin são extravagantes, muito justas e normalmente as impede de se comportarem ‘naturalmente’. Isso é intencional, Fassbinder procura constantemente trabalhar a ideia de ‘amor’ como um ‘objeto de desejo’ que pode ser ‘comprado’, aprisionado ou ainda mesmo manipulado através do poder aquisitivo e de status social, daí esse acumulo de objetos em cena exemplificando essa relação de poder através dos sentimentos como moeda de troca, onde o ‘amor’ é barganhado, racionado e/ou medido conforme as coisas que o represente.
O autor sugere este comportamento em suas personagens como uma consequência imediata da sociedade pós-industrial, onde tudo é feito para o consumo, para serem colecionadas e compradas a qualquer preço visando satisfazer os desejos imediatos, e com isso gerando pessoas ‘coisificadas’ e também descartáveis. Há uma fala de Karin que sintetiza bem este pensamento:

Papai bebeu muito e... não, não foi bem assim... Um dia seu patrão lhe disse: “Thimm, somos uma companhia competitiva e não temos mais lugar para pessoas da sua idade”. Não tenho certeza... eu não estava lá, mas foi algo assim. Ele se desfez em lágrimas e começou a agir com violência. Alguém da segurança veio e o botou para fora. Ele foi para o seu bar de costume e se embriagou. O que mais ele poderia fazer? Meu pai sempre bebeu muito. Então voltou pra casa, matou minha mamãe e depois se enforcou. Não via nenhum futuro para si ou para sua esposa. Foi assim que se passou. Depois fui logo para Austrália. Mas lá as coisas não foram tão fáceis. Não se chega a nenhum lugar sem esforço. Questão de oportunidades, etc. Se não se está na corrida como todos, os outros ficam contentes quando a gente capota. [FASSBINDER, 1972, p. 19-20].

A trama acontece na casa-atelier da estilista, onde sua secretária Marlene observa tudo, sabe (mais do que pode dizer) da vida de sua patroa – por quem nutre estranhamente um amor não correspondido. Aliás, esta é uma personagem enigmática enquanto se encontra horizontal, (apenas no universo dramatúrgico). É através de sua verticalidade (seja no filme, seja na peça) que percebemos suas nuances claramente. E é Marlene quem se caracteriza de exemplo maior como refém de um amor ‘sem valor de barganha’, cuja ‘virtude’ que ela carrega não vale nada. Ela personifica esse jogo de poderes, onde o sentimento é aprisionado.
Interessante observar que no script da peça, não há qualquer descrição do ambiente. Logo, conclui-se que, seu autor deixa a critério de cada diretor executar a verticalidade da obra, explorando suas características hipertextuais conforme queira acentuar um ou mais aspectos conceituais encontrados na trama. As únicas indicações de que a primeira cena se passa no quarto da protagonista é: “Marlene abre as cortinas ruidosamente”, nada mais. Fica subentendido que a casa da estilista é o próprio atelier – daí mais uma vez um recurso imagético que Fassbinder utiliza para nos mostrar que o ser humano pós-moderno já não difere ou separa sua vida emocional/social de sua vida do trabalho, tornando-o refém do mecanicismo, essa não dissociação reflete o caminho para o aprisionamento da sensibilidade interpessoal das pessoas em sociedade, é o famoso ‘cada um por si...’ que Fassbinder nos mostra a todo momento em su’As Lágrimas Amargas.
Outro dado: o ambiente não é descrito, daí a subjetivação da criação dele sendo emanando através das falas das personagens como algo universal. O texto, porém é fechado em si e aberto nas possibilidades para sua construção. Essa “tradução” do texto literário para a linguagem fílmica prescinde dos recursos da estilização: paródia e/ou paráfrase. A seguir analisaremos pequenos trechos adaptados do script da peça para modelar o filme. Para compreendermos essa transposição de suportes artísticos devemos considerar o teor da obra originalmente escrita como texto dramatúrgico. N’As Lágrimas Amargas essa passagem foi ‘fiel’ ao seu conteúdo devido a adaptação da peça para o filme ter sido executada pelo próprio autor. Fassbinder utilizou-se da paródia e da paráfrase em alguns casos para fazer essa passagem estilística,

Assim como um texto não pode existir fora das ambivalências paradigmáticas e sintagmáticas, paráfrase e paródia se tocam num efeito de intertextualidade, que tem a estilização como ponto de contato. Falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças. (SANT’ANNA, 2013, p. 28)

Fassbinder apropria-se da artificialidade dos manequins espalhados pelo ambiente para tornar ‘palpável’ o caráter frio das personagens. Constrói um cenário antinatural onde os sentimentos e desejos secretos são parodiados pelas manequins1, pela boneca2e3, e até mesmo por uma foto de jornal4 onde aparece o próprio diretor, juntamente com um assistente e suas atrizes no Set, (fotos).

 
(1)



 (2)

 (3)

 (4)

Este último artificio da foto (4) ainda pode ser analisado pelo recurso intersemiótico, onde a imagem trouxe para dentro do filme um fragmento ‘real’ da realidade, não um fragmento ‘verossímil’ da realidade. Observamos então, um pequeno ruído metalinguístico transfigurado em paródia da própria vida e oficio do diretor dando-nos mais uma pista enquanto espectadores informados de que se trata de algo autobiográfico transfigurado em ficção (?). Fassbinder é inteligente demais e irônico a ponto de mostrar e ocultar pequenos indícios em todos seus filmes, inclusive.
Ao fazermos paralelos entre uma peça adaptada para o audiovisual concluímos que uma obra em formato horizontal ao ser transportada para verticalidade, inevitavelmente é submetida a ajustes intersemióticos, que em contrapartida, trazem à tona processos estilísticos comuns apenas ao suporte do cinema, tais como planos; recursos de câmera e edição; construção da mise-en-scène; fotografia, locações; etc., e estas trazem emprestadas para seu universo outros recursos, sobretudo das Artes Plásticas e principalmente teatrais, como atesta CÂNDIDO, “O cinema e o teatro apresentam muitos aspectos concretos, mas não podem, como a obra literária, apresentar diretamente aspectos psíquicos, sem recurso à mediação física do corpo, da fisionomia ou da voz” (2014, p. 11), desse modo este autor nos indica que a obra literária sempre será superior à sua transposição seja para o teatro, seja para o filme, devido a imaginação pessoal ser mais rica em conexões afetivas do que qualquer outro recurso disponível para sua concretização enquanto obra de arte exterior a nós. Essa compreensão da leitura como fonte maior de imagens é reforçada conforme também em COSTA e FEREEIRA em seu artigo sobre a constituição do processo de leitura segundo Vygotsky:

Ao ler, o leitor busca a sintonia de sua própria historicidade com a do autor (virtualizado no texto). É a tentativa de encontro real através de virtualidades que se configuram. Neste instante, ao contatar o texto, o leitor produz conhecimento do que está escrito. Este conhecimento é sempre acompanhado de outra produção: a construção de imagens. São as imagens, a efetiva produção do leitor. De tal sorte que, mais tarde, ele já não se lembrará do texto, mas das imagens que associou ao que leu, como signo de mediação a novas leituras. Simbolicamente, o texto produziu no leitor uma representação que, associada às outras representações, resultam em um conjunto de figurações internas, individuais e provisórias – posto que se atualizarão a cada leitura – que denominaríamos fruição, ou parte de uma atividade instrumental por excelência. Assim, o texto existe para o leitor não só como os símbolos registrados pelo autor, mas pelas imagens que produz, as quais constituem o próprio leitor. (2011, p. 219).
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Portanto, não há obra de maior impacto, senão as próprias lembranças individuais que nos fazem ‘viver’ as aventuras narradas nas folhas de um livro. Entretanto é inegável a capacidade do Cinema servir-nos de canal sensorial e cognitivo acerca de sentimentos e compreensões outras da realidade, que talvez nos seriam impossíveis de alcançar sem esse suporte linguístico e artístico devido aos imediatos processos complexos de conexões mentais que as imagens de um filme associadas à musica, à ações das personagens ao contexto sintetizado das ações do enredo proporcionam ao espectador. Por isso o Cinema é também chamado de A Sétima Arte, pois em pouco mais de cem anos de sua invenção, já tem uma linguagem e sintaxe próprias, e o melhor de tudo: ainda em (constante) construção.

Hellen Katiuscia de Sá - escrito em: 30 de Outubro de 2014.




*Este artigo também está presente no livro: DOS PALCOS ÀS TELAS DO CINEMA
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Referências:

CANDIDO, Antônio. et al. A Personagem de Ficção. São Paulo: editora Perspectiva. Disponível em: <http://groups.google.com/group/digitalsource> acessado em  14 ago. 2014.

COSTA, Fabiane Adela Tonetto. e FERREIRA, Liliana Soares. SENTIDO, SIGNIFICADO E MEDIAÇÃO EM VYGOTSKY: implicações para a constituição do processo de leitura. REVISTA IBEROAMERICANA DE EDUCACIÓN. N.º 55 (2011), pp. 205-223 (ISSN: 1022-6508).

FASSBINDER, Rainer Werner. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Disponível em:
<www.oficinadeteatro.com>  acessado em 07 ago. 2014.

FOLHA DE SÃO PAULO, 12 de abril de 2001. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac1204200101.htm> acessado em 12  out. 2014.

HOBBES, Thomas. O Leviatã. (1651), Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.  Disponível em: <http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/9/98/Thomas_Hobbes.pdf> acessado em 29 out. 2014.

MILAN, Pietro. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972). Disponível em:

PLAZA, Júlio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: editora Perspectiva, 2003.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Faráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 2003.

___________ Rainer Werner Fassbinder. Disponível em: <http://filmow.com/rainer-werner-fassbinder-a101384/>  acessado em 08 out. 2014.



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