terça-feira, 30 de outubro de 2012

SOCIALISMO, de Jean-Luc Godard


O filme é entrecortado por vários acontecimentos, diria melhor: vários retalhos de momentos variados de vida de pessoas quaisquer. Há, porém, um elo entre essa balburdia de Babel, que pode dar um sentido ao quebra-cabeça: um navio transatlântico navega pelo filme inteiro, com seus tripulantes ora conversando, ora lembrando-se de algo, ora apenas olhando a calmaria ou fúria do mar. As águas correndo remetem o escorrer do tempo.

A impressão que eu tive do filme com esses recortes e diálogos e cenas meio ‘desarrumadas’, é que se trata dos pensamentos que escapam das mentes dos passageiros a bordo do navio. Veio-me a lembrança de outro filme que se passa em grande parte dentro de uma nau –  ‘E La nave Vá’, de Frederico Fellini, um de meus filmes favoritos pela poesia, fluidez onírica e delicadeza da obra; tive o privilégio de assisti-lo no cinema quando mocinha, em sessão especial certa vez! – entretanto, o transatlântico de ‘Socialismo’ deixa escapar cenas e as vozes aleatoriamente, invadindo imagens referentes a outros personagens e/ou acontecimentos, digamos assim. Sugerindo que tudo está interligado, pois estamos no mesmo barco, afinal... sim, os passageiros do transatlântico do filme e quem os acompanha olhando o filme.

Em alguns momentos identifiquei-me com o garoto que vaga livremente a bordo do navio, e explora tudo sem qualquer preocupação ou prisão. Ele também em algumas passagens funciona como elemento de ligação. Aqui igualmente se registra a pegada inconfundível da Nouvelle Vague, da qual o próprio Godard foi um dos pais; as características mais evidentes: a não-linearidade dos acontecimentos; vozes em off; letreiros na tela preta entrecortando cenas; assuntos políticos inerentes à contemporaneidade.

Outra coisa que incomode talvez o espectador que não tem o olhar educado para diferentes estéticas e propostas de filmes menos compromissados com o estilo clássico de montagem e efeito de sonoplastia, por exemplo, pode se sentir deveras agastado ao assistir ‘Socialismo’. Acredito que Godard joga com a sonorização do filme para ‘sacudir’ mesmo o espectador na poltrona de cinema... sugerindo que ele não se acomode, não durma, tenha a experiência sensitiva não apenas através do olhar sincronizado aos ouvidos, pois na vida as coisas surgem  em velocidades e sintonias diferentes que necessitam uma percepção bem mais abrangente, e quem está apto a captar essas nuances dos acontecimentos cotidianos, está mais apto a safar-se na seleção natural da evolução intelectual e dos sentidos.

Esse raciocínio pode ser captado com algumas falas em off: “Sabe-se que quando alguém vai para o Sul, a latitude torna-se negativa. E tudo o que resta é ir ao Norte, querida alma, querida amiga”/ “Estamos encarando uma espécie de zero. Certa vez encontrei o Nada. E era muito maior do que alguém possa imaginar”/ “Todo movimento em uma superfície plana que não é ditado por uma necessidade física, resulta em uma afirmação espacial dele mesmo, seja ao construir um Império, ou ao se fazer turismo”/ “Qualquer um pode fazer algo porque Deus não está aqui”.

Outro recurso estético, que também acredito não estar à toa no filme, traduz-se em partes de imagens tão saturadas e/ou com baixa definição... também convidando o espectador a (re)educar seu olhar não somente para o filme, como também para a vida; como se Godard transferisse para a tela de cinema a impressão de olhar turvo das pessoas que muitas vezes veem algo mas não enxergam em sua totalidade, parece que a vista está turva diante de acontecimentos do dia-a-dia. Godard já sem a menor preocupação em agradar a massa, é direto e cru em suas assertivas: quem alcançar, alcança... quem não conseguiu ou desiste ou corre atrás para compreender o que seu filme diz. E diz tanta coisa ao mesmo tempo.


Godard chega ao refinamento da linguagem cinematográfica, dispensa os simbolismos e associações mais evidentes que o publico já está acostumado e educado para detectar nos filmes; ele discorre freneticamente nas informações audiovisuais; querendo retratar o ritmo de nosso tempo pós-contemporâneo (talvez). Aqui também me vem algo na cabeça que se relaciona com os recortes e falatórios e imagens no decorrer do filme: que tudo está interligado, porém igualmente em constante transformação. A vida não é algo fechado, é dinâmica, os rumos podem ser trasladados a qualquer momento; basta querer ir, arriscar-se... a maré é avassaladora.

“Abandonar o navio...”. Voltando às minhas impressões sobre o filme de Godard. Uma de minhas cenas favoritas é a passagem de dois gatinhos miando... que amor! – Adoro gatos, já tive muitos de estimação! E tenho uma que está sempre comigo quando eu estou em casa –  podemos pegar esta cena e associar ao dilema da (falta de) comunicação adequada com o outro... o que eu falo e o que o outro compreende... as deficiências da linguagem.

Na cena os gatinhos miam entre si parecendo até uma conversação entre eles, em seguida uma moça aparece vendo essas imagens em seu computador e repete a onomatopeia ‘miau’ em forte dilema entre o que comumente se encerra para compreensão desta grafia. Verifica-se que há diferenças daquele som linguístico felino sintetizado pela gramática humana. O auditivo difere da palavra escrita e pronunciada... não existe apenas o ‘miau’, há também o ‘ron-ron’, o ‘fru-fru’, o ‘hmm’ como representante fonético do felino para a língua humana. Desse modo há também as diferentes compreensões de enunciados quando conversamos com um interlocutor.

A questão é: eu ou você estamos realmente abertos e interessados a escutar o que o outro tem a nos dizer? Seguindo a mesma cena: a moça diz para alguém fora de plano que “ ’Miau’ é como os antigos egípcios chamavam seus gatos”. Entretanto, seu interlocutor nem liga para o que a moça diz e ainda pede para ela ficar calada... Vivemos numa sociedade de imposições, tirania, dominação, subjugação do semelhante. Onde quem grita mais, vence e dane-se o modo particular de cada um em manifestar suas ideias, em manifestar-se como verdadeiramente é, em manifestar suas vontades. Tudo é tragado pelo comportamento em serie e de intransigências.

Aí eu volto novamente ao que coloquei anteriormente [na vida as coisas surgem  em velocidades e sintonias diferentes que necessitam uma percepção bem mais abrangente]. A linguagem humana é deficiente em seu alcance de transmissão, quanto de recepção. Precisamos de variados suportes para dizer tudo o que pensamos ou sentimos. O dialogo e o entendimento é algo comparável ao compasso de musica: deve ter tempo, ritmo, métrica, harmonia... e tais elementos somente são alcançados quando se escuta a si e ao outro com igual interesse e atenção.

Na mesma cena segue-se um diálogo entre a moça que fala a palavra ‘miau’ e outro interlocutor, agora uma voz feminina que fala em alemão, em resposta da moça do ‘miau’ que fala em francês. Em seguida entra uma filmagem antiga de combate, a narração fala sobre a guerra entre franceses e alemães... a cena é interrompida por outra em terrível definição de imagem, e há um dialogo entre um velho e uma mocinha numa festa:

VELHO: “Você sabe o que significa 'kamikaze' em japonês?”

MOCINHA: “A divindade do vento?”

VELHO: “exato.”

Acho que dentre as várias coisas que o filme ‘Socialismo’ mostra e refere-se, eu escolhi como tema principal, que segundo o meu entendimento é a (in)comunicabilidade e dificuldade que os seres humanos têm de se relacionar com as diferenças: os diversos cacos de imagens e falas nos remete às simples ações de boa-vontade: olhe e veja; escute e fale; ame-se e respeite o próximo igualmente. A própria estrutura do filme nos remete a essa falta de compreensão das coisas, na dificuldade de ver e enxergar de fato; da dificuldade de ouvir o próximo. A estrutura como o filme se mostra adere também seu conteúdo à forma; percebi essa aderência de alma e aparência semelhante ao encontrado no filme POCILGA, de Pier Paolo Pasolini.

Godard nos convida a simplificação das coisas, não à compreensão simplória das mesmas, e perambula sobre isso em seu filme através de diversas maneiras de tocar no assunto da comunicação como chave-mestra para a Paz no macro e micro mundo das pessoas; o diretor utiliza-se da História, da Sociologia, da Psicologia, do Existencialismo, da Economia Mundial,  da Antropologia, da Filosofia para nos dizer isso. Adverte-nos em diversas passagens do filme que o quê importa é o sujeito e não suas posses e poses. O resgate da valorização da pessoa e não do objeto que a orna. Há uma fala interessante ao longo do filme que ilustra isso, e ainda faz um profundo resgate histórico num resumo dos fatos incrível nesse dialogo breve:

HOMEM UM: “O dinheiro foi inventado para que as pessoas não tivessem que se olhar nos olhos”.

HOMEM DOIS: “Então, de volta ao Zero, meu amigo”.

HOMEM UM: “Felizmente, foram os árabes que o inventaram. Não temos que pagá-los pelo copyright.”

HOMEM DOIS: “Normal: os números negativos foram inventados na Índia.”

HOMEM UM: “Eles fizeram alguma coisa na Arábia, antes de chegarem à Itália. Fibonacci foi o primeiro a utilizá-los, quando os britânicos deixaram Israel... O quê, exatamente, você fez com o dinheiro do Banco da Palestina?”


O dinheiro – riqueza e poder – Justamente a mola-mestra do mundo: tanto constrói como destrói, dependendo da sua aplicabilidade de valores. (...) Um fato interessante que eu notei no filme de Godard. As cenas de pior definição visual normalmente são as das festas... será que ele sugere que o velho ‘ Pão e Circo’ distrai a massa dos assuntos mais sérios como a politica, a economia, a educação, a melhor distribuição per capita de renda entre os Países? E as águas rolam... com tubarões acuando cardumes de peixes menores.

Uma sensação boa que o filme de Godard me deixou, foi por causa de alguns enquadramentos como se a câmera apenas estivesse observando o cotidiano das pessoas dentro do navio. Em algumas cenas os indivíduos não representam, apenas são o que são. E o enquadramento da câmera vem de um ambiente de fora de onde essas pessoas estão. O olhar voyeur do cineasta torna seu filme cheio de quebra-cabeças algo mais próximo da realidade, pois o dia-dia é também picotado em menor proporção de informações e pensamentos, mas também nos é assimilado dessa forma, se formos observar.

Deixei-me conduzir de toda informação possível que consegui apreender do filme. Fiquei bastante aberta ao mesmo, porém também não o assisti de forma linear, dei pausa e fui fazer outras coisas, fui assistindo-o aos pedaços... e isso não faria a menor diferença mesmo! “A mente tira da matéria percepções que transforma em seu alimento e o devolve em forma de movimento no qual expressa sua liberdade.”, eis uma das falas mais belas do filme em minha opinião, na voz do menino que aparece vez por outra sempre livre explorando o espaço do navio, e que bem no inicio do filme um velho o chama de ‘criança encapetada’ por ele não seguir as regras de ninguém e ir saciando livremente sua curiosidade de explorador.

Lá pelas tantas eu já estava curiosa para saber aonde o transatlântico iria aportar de vez. “As ideias nos separam. Mas os sonhos nos aproximam...”, outra bela frase dita em ‘Socialismo’.

“Mostrar, antes de tudo. Mostrar o que é possível. Isso é tudo.”

“O quê, por exemplo?”

“Não falar sobre o invisível. Mostrá-lo.”

Não perder-se em elucubrações sobre a vida, e sim vivê-la. Conseguir o equilíbrio entre conhecimento adquirido nos livros e a praticidade da convivência coletiva... evitar tornar-se arrogante e apartado da civilização. Ter bom senso e interatividade com seu semelhante: escutá-lo, compreendê-lo e fazer-se compreender; pois o conhecimento alarga as percepções e a priori, deveria libertar o ser das armadilhas sociais. O conhecimento deveria deixar-nos mais humildes do que arrogantes, (em minha opinião).

“O sonho do Estado é ser sozinho. O sonho do indivíduo é tornar-se dois.”

O tempo é um mistério encerrado através da maquina inventada pelo homem – o relógio –  que ao mesmo instante aprisiona as horas corridas manifestando a incapacidade do homem em detê-las. O relógio ergue-se como uma pequena antítese de si mesmo. A negação da existência que existe através do tempo contado e morto assim que nasce através dos ponteiros. Nascemos, e a única certeza que sabemos é que iremos prescindir do tempo que se escorre. Daí muitas passagens da segunda parte do filme de Godard – pois em minha opinião ‘Socialismo’ tem três momentos –  discorre sobre as decisões que cada um toma a partir do momento que se descobre a si mesmo.

 “A liberdade é cara...”
“Que horas são?”
“Nada mais que a hora certa”.

“Quando a lei não é justa, a justiça passa por cima da lei”.
Entretanto, do pó viemos e ao pó retornaremos. ‘Socialismo’ de Jean-Luc Godard não é um filme fácil, traz inúmeras possibilidades de compreensão, assim como a vida nos revela variadas formas de vivê-la. A escolha e conhecimento para interpretá-la são de cada um.


Katiuscia de Sá
29 e 30 de outubro de 2012.

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