Cinema de Arte. Com roteiro e direção do polonês Andrzej
Zulawski (1940), “Possessão” (1981) é um longa-metragem da estirpe e denominação
que os meninos da Nouvelle Vague inventaram
como sendo ‘cinema de autor’. O filme é sombrio, tenso, estranho, nervoso; profundamente
simbólico e cerebral, causando variadas reações psicofísicas no espectador
desavisado e desacostumado com tramas densamente psicológicas, devido ao nível de
angustia a todo instante apresentado no decorrer da estória; esse desconforto
aconteceu comigo ao assistir o filme há dois anos e meio mais ou menos, numa
sessão no Cineclube Alexandrino Moreira (Belém/PA).
Desde o inicio o clima misterioso que envolve a crise do
casal protagonista chega aos extremos de ápices e mais ápices em diversos níveis de tensões.
Tudo acontece em ritmo frenético, nervoso, sem pausas para respirar e digerir
as coisas [sensação genialmente aumentada pela utilização do recurso de steadicam e SC nas cenas de maior angústia].
Algumas delas – as que mais me impactaram – foram no nível cotidiano, onde nos é mostrado um
casal em crise de relacionamento, sendo que o pai tenta poupar o filhinho de
seis anos para não sofrer com os desentendimentos entre ele e sua esposa.
Apresentando conexões simbólicas complexas utilizadas pela
linguagem audiovisual (que em outro nível são ricamente mentalizadas na
linguagem da Literatura), podemos adentrar no psicológico das personagens e até
desmembrar algumas suposições, como por exemplo, classificar níveis de ação observados
na personagem “Anna” que dá mobilidade à trama, muito bem vivida pela atriz francesa
Isabelle Adjani, cujos fatos giram em tono. Consegui
enxergar três níveis de ações, são eles:
1º PESSOA) a cotidiana (a mãe,
esposa e dona de casa);
2º PESSOA) instinto latente da
mulher (com seus desejos de liberdade, dúvidas, contradições e também indivíduo
mais próximo do perfil humano com seus defeitos e qualidades);
3º PESSOA) o subconsciente dos
níveis anteriores (e diria a mais complexa e sombria, traço que traz o aspecto
sobrenatural e fantástico à trama, pois através desse nível – o psicológico em estado bruto – materializam-se as consequências das ações da
personagem guiada pelos níveis anteriores).
Estou tentando traçar esses
aspectos sensoriais mediante minha lembrança do filme (que assisti pela
primeira e única vez há uns dois anos e meio), e como o processo da lembrança assemelha-se
ao processo de montagem das cenas em um filme – pela prioridade das imagens e
sensações que mais nos são significativas e contribuem para compreensão da
narrativa – acho que o entendimento e profundidade dessa compreensão acerca do
teor apresentado na obra cinematográfica pode ser beneficiado; pois em se
tratando de Cinema, parto do pressuposto que as mensagens subliminares são
justamente perceptíveis e fixadas na memória pelo conjunto impactante, cujas
cenas e a intensidade delas exploradas pelo recurso da imagem, do som e do sensório
que o veiculo cinematográfico exerce no espectador, leva até ele os variados níveis
de mensagens contidas no filme, justamente porque o espectador faz conexões com
suas próprias memorias e cargas emotivas.
Conforme estudos de Psicanálise
desenvolvidos por Sigmund Freud, as representações tecidas pela mente são
análogas (físicas) e imagéticas (sensorial) onde através de redes associativas elas
se inter-relacionam e se organizam, por isso o recurso do Cinema pode explorar
com mais sucesso e alcance assuntos que seriam menos compreensíveis e
evidenciados se fossem apresentados pela via apenas da Literatura ou pela Fotografia,
ou Artes Plásticas, ou pela Dança ou Teatro; o Cinema utiliza as demais manifestações
artísticas como seus braços e pernas contribuindo para o aprofundamento e
abertura desse mundo inteligível que nos rodeia, porque o Cinema nos remete ao
nosso próprio alfabeto iconográfico interno (em estado latente) de maneira mais
rápida e muitas vezes inconsciente, daí a lembrança ser também um canal para a
maturação dessa compreensão.
Voltando à angústia de “Possessão”.
Eu me ausentei três vezes da sala de cinema quando o assisti (saí para vomitar), pois o nível
de tensão era tão sufocante para mim, que as reações psicofísicas foram
imediatas: dor de cabeça, mãos suadas, boca seca, falta de ar, dor de barriga, ânsia
de vômito, enjoos, sentimento de perigo iminente, tensão muscular, tonturas! Da
terceira vez que sai da sala de cinema eu realmente quase desmaiei, fui me esgueirando
pelas paredes. Fui ao lavabo do banheiro, me apoiei na pia e joguei bastante
água no rosto e nuca para me reabilitar a retornar ao filme, pois queria acompanha-lo
até o final. Sofri mesmo vendo esse filme... Pareciam até os sintomas preliminares
de uma Dengue iminente! Só para enfatizar: eu não estava doente nesse período. Acredito
que pelo fato de eu ser atriz e ter na bagagem inúmeros treinamentos psicofísicos
tanto para o nível da Dança quanto para o Teatro, minha sensibilidade esteja
mais dilatada, susceptível e disposta a captar essas nuances sensitivas exploradas
nas linguagens artísticas em geral (em especial pelo audiovisual), do que
acontece com pessoas que ainda não foram sensibilizadas a utilizarem seus
canais sensórios como vias de captação de níveis de realidade e para
compreender mensagens de nível inteligível; e justamente “Possessão” traz tudo
isso e algo mais.
O filme é histérico do inicio ao
fim, sem espaços de Paz... Fala sobre o casamento, sobre o relacionamento a
dois, do drama familiar mal resolvido, fala sobre o medo, arrependimento,
sentimento de culpa (remorso), cobrança, abandono e solidão, sobre desejo de
transformação. Além do mais, outros temas são abordados de maneira bastante
sutil, como (possíveis) fatores transversais responsáveis que interferem para o
inexplicável comportamento histérico e transloucado das personagens. Esses
fatores são pequeninas pistas dentro do filme, que para o espectador com olhar
mais dilatado, tornam possível fazer conexões com os diversos níveis de
controle social ao qual estamos expostos, cujas consequências são veladas, sendo
estas consequências manifestadas através do 3º nível de ação (como exemplifiquei
acima usando a personagem “Anna”).
O que Zulawski faz é justamente
materializar esse horror, esse ‘efeito colateral’ que o comportamento dentro do
que a sociedade justifica como de bom tom, acarreta nas pessoas. Todos temos
nossos monstros interiores, sendo que alguns indivíduos os acorrentam melhor do
que outros, e portanto vivemos sempre lado a lado com nossos fantasmas pessoais.
Alguns sujeitos tentam enfrenta-los; outros os abafam; há também aqueles que os
derrotam, mas num ou noutro caso, as consequências vêm à tona. E Zulawski
utiliza simbolismos/metáforas do audiovisual para nos instigar a raciocinar
sobre essas questões mal resolvidas, principalmente na esfera dos sentimentos
que povoam a instituição familiar.
Os ‘tentáculos’, que a certa altura são apresentados através
de uma criatura, em situação pra lá de bizarra, podem ser tranquilamente figurativos do poder de persuasão deste segundo ‘amante’ que “Anna” prefere (ou cede) para
se relacionar, deixando seu marido e seu primeiro amante se engalfinhando
enquanto ela se esbalda quase que escravizada e fora de si numa busca desesperada
por afeto/segurança/união estável (?).
Os longos tentáculos também sugerem que o segundo amante é mais
bem dotado (aqui entra meu tom sarcástico, ok!) e detentor de maior poder persuasivo
(promessas), pois faz com que “Anna” modifique sua personalidade e até abandone
seu filho para viver com a criatura – em alguns pontos do filme “Anna” vira “Helen”
uma professorinha meiga e controlada, nada haver com a imprevisível “Anna” em sua
tentativa desesperada de encontrar um parceiro que a satisfaça não apenas no nível
sexual, mas também a envolva, a enlace gerando segurança afetiva(?). Metáfora
fortalecida pelos atos simbólicos da moça quando ela mata pessoas e oferece como
comida suas vitimas para que o monstro cresça e tome forma (ou seja, sugere que
a personagem está disposta a passar por cima de tudo e de todos por algo que
ela acredita que vai dar certo, no caso a tentativa de relacionamento com esse
segundo amante, mesmo sendo ele um monstro...).
Minha leitura sobre essa fantástica aparição da criatura, é
que enquanto o marido e o primeiro amante se enfrentam, deixam a pobre “Anna” a
mercê do primeiro que a encontrar vulnerável (aí entra o simbolismo do monstro
asqueroso naquele ambiente em decomposição – também extensão da metáfora que
sugere a destruição/decadência da instituição familiar), pois em cenas
anteriores vemos “Anna” e seu marido “Marck” (interpretado pelo ator Sam Neill) em conflitos brutais, onde ele em nenhum momento
tenta compreender porque sua esposa o abandona; “Marck” ao invés de tentar
escutar os motivos que levam sua companheira ao sumiço, cobra dela uma
fidelidade já órfã do diálogo entre os dois, o que leva ao óbito o
relacionamento deles, pois sem diálogo (seja em que nível for), não há
relacionamento. A casa cai (ou toca fogo como sugere o final do filme), outra
metáfora: o fogo transformador dos elementos... o canal que purifica.
Em entrevista à época de seu filme, o diretor Zulawski disse
que se valeu de situações de seu próprio casamento para escrever o roteiro...
daí, percebe-se o poder de balsamo e cura que as Artes exercem tanto para quem
a faz quanto para quem a recebe. Contudo, “Possessão” entra na minha lista de
filmes que eu só assisto uma única vez, pelo fato de gerar em mim um tremendo
mal estar psicofísico. “Possessão” é como aquelas manifestações geniais que de
tão estranhamente belas e luminosas podem me cegar a vista, pelo fato de eu ser realmente muito frágil. No meu caso, basta contemplá-las
uma vez apenas, que o impacto é tão visceral capaz de me fazer enxergar as
coisas...
Hellen Katiuscia de Sá
29 de julho de 2013
03:19H da madrugada.
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POSSESSÃO
Ficha Técnica:
Ficha Técnica:
Gênero: Terror
Direção: Andrzej Zulawski
Roteiro: Andrzej
Zulawski, Frederic Tuten
Elenco: Heinz
Bennent, Isabelle Adjani, Margit Carstensen, Sam Neill
Produção: Marie-Laure Reyre
Fotografia: Bruno Nuytten
Trilha Sonora: Andrzej Korzynski
Duração: 80 min.
Ano: 1981
País: Alemanha / França
Cor: Colorido
Classificação: 18 anos
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