segunda-feira, 29 de julho de 2013

POSSESSÃO – quando perdemos a capacidade de enfrentar nossos sentimentos, geramos os fantasmas que nos sufocam.


Cinema de Arte. Com roteiro e direção do polonês Andrzej Zulawski (1940), “Possessão” (1981) é um longa-metragem da estirpe e denominação que os meninos da Nouvelle Vague inventaram como sendo ‘cinema de autor’. O filme é sombrio, tenso, estranho, nervoso; profundamente simbólico e cerebral, causando variadas reações psicofísicas no espectador desavisado e desacostumado com tramas densamente psicológicas, devido ao nível de angustia a todo instante apresentado no decorrer da estória; esse desconforto aconteceu comigo ao assistir o filme há dois anos e meio mais ou menos, numa sessão no Cineclube Alexandrino Moreira (Belém/PA).

Desde o inicio o clima misterioso que envolve a crise do casal protagonista chega aos extremos de ápices e mais ápices em diversos níveis de tensões. Tudo acontece em ritmo frenético, nervoso, sem pausas para respirar e digerir as coisas [sensação genialmente aumentada pela utilização do recurso de steadicam e SC nas cenas de maior angústia]. Algumas delas – as que mais me impactaram – foram no nível cotidiano, onde nos é mostrado um casal em crise de relacionamento, sendo que o pai tenta poupar o filhinho de seis anos para não sofrer com os desentendimentos entre ele e sua esposa.

Apresentando conexões simbólicas complexas utilizadas pela linguagem audiovisual (que em outro nível são ricamente mentalizadas na linguagem da Literatura), podemos adentrar no psicológico das personagens e até desmembrar algumas suposições, como por exemplo, classificar níveis de ação observados na personagem “Anna” que dá mobilidade à trama, muito bem vivida pela atriz francesa Isabelle Adjani, cujos fatos giram em tono. Consegui enxergar três níveis de ações, são eles:

1º PESSOA) a cotidiana (a mãe, esposa e dona de casa);
2º PESSOA) instinto latente da mulher (com seus desejos de liberdade, dúvidas, contradições e também indivíduo mais próximo do perfil humano com seus defeitos e qualidades);
3º PESSOA) o subconsciente dos níveis anteriores (e diria a mais complexa e sombria, traço que traz o aspecto sobrenatural e fantástico à trama, pois através desse nível –  o psicológico em  estado bruto –  materializam-se as consequências das ações da personagem guiada pelos níveis anteriores).

Estou tentando traçar esses aspectos sensoriais mediante minha lembrança do filme (que assisti pela primeira e única vez há uns dois anos e meio), e como o processo da lembrança assemelha-se ao processo de montagem das cenas em um filme – pela prioridade das imagens e sensações que mais nos são significativas e contribuem para compreensão da narrativa – acho que o entendimento e profundidade dessa compreensão acerca do teor apresentado na obra cinematográfica pode ser beneficiado; pois em se tratando de Cinema, parto do pressuposto que as mensagens subliminares são justamente perceptíveis e fixadas na memória pelo conjunto impactante, cujas cenas e a intensidade delas exploradas pelo recurso da imagem, do som e do sensório que o veiculo cinematográfico exerce no espectador, leva até ele os variados níveis de mensagens contidas no filme, justamente porque o espectador faz conexões com suas próprias memorias e cargas emotivas.

Conforme estudos de Psicanálise desenvolvidos por Sigmund Freud, as representações tecidas pela mente são análogas (físicas) e imagéticas (sensorial) onde através de redes associativas elas se inter-relacionam e se organizam, por isso o recurso do Cinema pode explorar com mais sucesso e alcance assuntos que seriam menos compreensíveis e evidenciados se fossem apresentados pela via apenas da Literatura ou pela Fotografia, ou Artes Plásticas, ou pela Dança ou Teatro; o Cinema utiliza as demais manifestações artísticas como seus braços e pernas contribuindo para o aprofundamento e abertura desse mundo inteligível que nos rodeia, porque o Cinema nos remete ao nosso próprio alfabeto iconográfico interno (em estado latente) de maneira mais rápida e muitas vezes inconsciente, daí a lembrança ser também um canal para a maturação dessa compreensão.

Voltando à angústia de “Possessão”. Eu me ausentei três vezes da sala de cinema  quando o assisti (saí para vomitar), pois o nível de tensão era tão sufocante para mim, que as reações psicofísicas foram imediatas: dor de cabeça, mãos suadas, boca seca, falta de ar, dor de barriga, ânsia de vômito, enjoos, sentimento de perigo iminente, tensão muscular, tonturas! Da terceira vez que sai da sala de cinema eu realmente quase desmaiei, fui me esgueirando pelas paredes. Fui ao lavabo do banheiro, me apoiei na pia e joguei bastante água no rosto e nuca para me reabilitar a retornar ao filme, pois queria acompanha-lo até o final. Sofri mesmo vendo esse filme... Pareciam até os sintomas preliminares de uma Dengue iminente! Só para enfatizar: eu não estava doente nesse período. Acredito que pelo fato de eu ser atriz e ter na bagagem inúmeros treinamentos psicofísicos tanto para o nível da Dança quanto para o Teatro, minha sensibilidade esteja mais dilatada, susceptível e disposta a captar essas nuances sensitivas exploradas nas linguagens artísticas em geral (em especial pelo audiovisual), do que acontece com pessoas que ainda não foram sensibilizadas a utilizarem seus canais sensórios como vias de captação de níveis de realidade e para compreender mensagens de nível inteligível; e justamente “Possessão” traz tudo isso e algo mais.

O filme é histérico do inicio ao fim, sem espaços de Paz... Fala sobre o casamento, sobre o relacionamento a dois, do drama familiar mal resolvido, fala sobre o medo, arrependimento, sentimento de culpa (remorso), cobrança, abandono e solidão, sobre desejo de transformação. Além do mais, outros temas são abordados de maneira bastante sutil, como (possíveis) fatores transversais responsáveis que interferem para o inexplicável comportamento histérico e transloucado das personagens. Esses fatores são pequeninas pistas dentro do filme, que para o espectador com olhar mais dilatado, tornam possível fazer conexões com os diversos níveis de controle social ao qual estamos expostos, cujas consequências são veladas, sendo estas consequências manifestadas através do 3º nível de ação (como exemplifiquei acima usando a personagem “Anna”).

O que Zulawski faz é justamente materializar esse horror, esse ‘efeito colateral’ que o comportamento dentro do que a sociedade justifica como de bom tom, acarreta nas pessoas. Todos temos nossos monstros interiores, sendo que alguns indivíduos os acorrentam melhor do que outros, e portanto vivemos sempre lado a lado com nossos fantasmas pessoais. Alguns sujeitos tentam enfrenta-los; outros os abafam; há também aqueles que os derrotam, mas num ou noutro caso, as consequências vêm à tona. E Zulawski utiliza simbolismos/metáforas do audiovisual para nos instigar a raciocinar sobre essas questões mal resolvidas, principalmente na esfera dos sentimentos que povoam a instituição familiar.

Os ‘tentáculos’, que a certa altura são apresentados através de uma criatura, em situação pra lá de bizarra, podem ser tranquilamente figurativos do poder de persuasão deste segundo ‘amante’ que “Anna” prefere (ou cede) para se relacionar, deixando seu marido e seu primeiro amante se engalfinhando enquanto ela se esbalda quase que escravizada e fora de si numa busca desesperada por afeto/segurança/união estável (?).

Os longos tentáculos também sugerem que o segundo amante é mais bem dotado (aqui entra meu tom sarcástico, ok!) e detentor de maior poder persuasivo (promessas), pois faz com que “Anna” modifique sua personalidade e até abandone seu filho para viver com a criatura – em alguns pontos do filme “Anna” vira “Helen” uma professorinha meiga e controlada, nada haver com a imprevisível “Anna” em sua tentativa desesperada de encontrar um parceiro que a satisfaça não apenas no nível sexual, mas também a envolva, a enlace gerando segurança afetiva(?). Metáfora fortalecida pelos atos simbólicos da moça quando ela mata pessoas e oferece como comida suas vitimas para que o monstro cresça e tome forma (ou seja, sugere que a personagem está disposta a passar por cima de tudo e de todos por algo que ela acredita que vai dar certo, no caso a tentativa de relacionamento com esse segundo amante, mesmo sendo ele um monstro...).

Minha leitura sobre essa fantástica aparição da criatura, é que enquanto o marido e o primeiro amante se enfrentam, deixam a pobre “Anna” a mercê do primeiro que a encontrar vulnerável (aí entra o simbolismo do monstro asqueroso naquele ambiente em decomposição – também extensão da metáfora que sugere a destruição/decadência da instituição familiar), pois em cenas anteriores vemos “Anna” e seu marido “Marck” (interpretado pelo ator Sam Neill) em conflitos brutais, onde ele em nenhum momento tenta compreender porque sua esposa o abandona; “Marck” ao invés de tentar escutar os motivos que levam sua companheira ao sumiço, cobra dela uma fidelidade já órfã do diálogo entre os dois, o que leva ao óbito o relacionamento deles, pois sem diálogo (seja em que nível for), não há relacionamento. A casa cai (ou toca fogo como sugere o final do filme), outra metáfora: o fogo transformador dos elementos... o canal que purifica.

Em entrevista à época de seu filme, o diretor Zulawski disse que se valeu de situações de seu próprio casamento para escrever o roteiro... daí, percebe-se o poder de balsamo e cura que as Artes exercem tanto para quem a faz quanto para quem a recebe. Contudo, “Possessão” entra na minha lista de filmes que eu só assisto uma única vez, pelo fato de gerar em mim um tremendo mal estar psicofísico. “Possessão” é como aquelas manifestações geniais que de tão estranhamente belas e luminosas podem me cegar a vista, pelo fato de eu ser realmente muito frágil. No meu caso, basta contemplá-las uma vez apenas, que o impacto é tão visceral capaz de me fazer enxergar as coisas...

Hellen Katiuscia de Sá
29 de julho de 2013
03:19H da madrugada.

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POSSESSÃO

Ficha Técnica:
Gênero: Terror
Direção: Andrzej Zulawski
Roteiro: Andrzej Zulawski, Frederic Tuten
Elenco: Heinz Bennent, Isabelle Adjani, Margit Carstensen, Sam Neill
Produção: Marie-Laure Reyre
Fotografia: Bruno Nuytten
Trilha Sonora: Andrzej Korzynski
Duração: 80 min.
Ano: 1981
País: Alemanha / França
Cor: Colorido
Classificação: 18 anos



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