Num comentário rasteiro e ingênuo (e até grosseiro!), pode-se
resumir “Black Moon” (1975), de Louis Malle (1932-1995) como possível versão
inspirada (bem de longe, eu diria...) em “Alice no País das Maravilhas” (literatura
infanto-juvenil escrita no séc. XVIII por Lewis Carroll); ou resultado criativo
duma viagem psicótica após o fumo de algum matinho seco prensado; ou ainda como
possível portal para o mundo dos sonhos, aderindo ao filme características de
realismo fantástico; e só estas comparações já enquadram a obra do diretor
francês como surrealista devido o enredo ser de difícil acesso, já que as
personagens e suas ações (mais as diversas simbologias contidas no filme), não
ajudam muito: há uma velhota fofoqueira (Therese Giehse) estirada numa cama e que adora mamar nas
moças que aparecem à sua frente. A velha ainda atura um mucurão rabugento chamado
“Humphrey”, que vez por outra entra no quarto dela para escrotiá-la;
acrescido a isso há vários animais silvestres e de fazenda convivendo na maior
com os moradores de uma enorme casa de campo. Outro estranho personagem é um
unicórnio falante e presunçoso de medidas XGGG, pra lá de horroroso. Também há um
bando de criancinhas peladas correndo junto ora com ovelhas, ora com os
porcos... Há ainda dois irmãos – um rapaz e uma moça (Joe Dalessandro e Alessandra Stewart), que
se comunicam por meio sinestésico (que alguns críticos apontam como incestuosos
dentro da trama) – eu particularmente não vi indícios de relação incestuosa
alguma entre eles no filme, mas enfim... cada um vê o que quer. Os
acontecimentos se desenrolam imersos numa guerra fajuta entre homens e mulheres
se matando ao longo de uma estrada por onde a estúpida adolescente “Lily”
(Cathryn Harrison) foge até encontrar esta fabulosa casa de campo.
Há quem considere o filme de cozimento vagaroso – uma maniçoba
Light e sem sal (mas vale lembrar que
se trata de cinema de Arte, e por isso mesmo pede ao espectador dois
ingredientes surpresa para poder saboreá-lo: conhecimento e cérebro pensante). Não
achei o filme lento. Gostei; sobretudo dos takes
externos, pois achei a luz natural da paisagem lindíssima, ajuda a construir a
atmosfera onírica reforçada pelas cores pastéis ao ar livre. As filmagens
aconteceram em propriedade do próprio diretor, no sudoeste da França. A fotografia, assistida pelo sueco
Sven Nykvist, parceiro de Bergman, em muitos momentos lembrou-me
bastante as cores e atmosfera dos filmes absurdos de outro diretor genial e assumidamente
simbólico e feiticeiro – Jan Svankmajer, cujo trabalho misto em Stop Motion e Live Action eu adoro mesmo!
Confesso que as cenas ao ar livre de “Black Moon” me
deixaram bastante relaxada devido às tonalidades suaves e a proximidade dos
sons da Natureza, também me fizeram lembrar meus fugidios momentos travessos de
infância jogada no mato e enfiada na terra úmida, geladinha; uma beleza(!), quando
eu teimava em brincar com os animais
criados no quintal da casa de meus avós (depois disso eu sempre ficava mal com
alergia na pele e/ou asma devido à poeira, e ainda levava uma surra ou bronca
de meus pais biológicos, mas nunca me abstinha dessa diversão natureba).
Falando mais sério agora. “Lua Negra” é daqueles filmes que
requerem (mesmo) no mínimo, um entendimento médio que seja, sobre os códigos
linguísticos de variados campos do conhecimento, justamente por tratar-se de
uma obra cinematográfica que invoca o Surrealismo para estabelecer diálogo com
seu espectador. Para falar sobre o filme, vou resgatar alguns pontos-chave que
pude perceber, para ajudar a tecer conexões possíveis para compreensão do
inteligível.
Poucos filmes de Arte que assisti até hoje me parecem tão
herméticos, mas “Black Moon” de Louis Malle... JesusMariaJosé! É hermético
mesmo. E como as passagens secretas para estes mundos maravilhosos normalmente
estão na cara da gente, pela simplicidade. Frequentemente a chave da Porta está
escondida dentro de algum vaso do hall de entrada da casa... quem lembra do
principio básico sobre o equilíbrio do Universo sabe onde ir nesses casos. “Lua
Negra” prescinde conhecer um pouco sobre iconografias do Ocultismo; simbolismos
provenientes das religiões pagãs da Baixa Idade Média Nórdica; uns Dogmas
Católicos e um punhado de conhecimento de Psicanálise, e o ingrediente mais
importante (eu diria), estar aberto ao convite da viagem que o filme nos acena.
Como mencionei ainda pouco, alguns críticos consideram o filme lento demais, e por
isso cansativo. Acho que algo só é cansativo quando não há o entendimento ou
não nos permitimos construir uma ponte para tal.
A escassez de dialogo coerente aponta que (talvez) a
narrativa se dê exclusivamente através das ações das personagens e da
simbologia contida nisso; ou seja, pelo caminho sensorial puramente, e nada
mais. Sem enquadramentos performáticos ou utilização de recursos sofisticados
de câmera, ou efeitos especiais, ou música. O longa-metragem acontece pela via
do enigma. Um Tempo-Espaço psicológico da cabeça das personagens, e estes
(quase todos) sugerem possuir poderes místicos.
O primeiro link que consegui tecer nesta obra de Malle veio através
da associação do nome da personagem “Lily” com o titulo do filme; pois “Lily”
tranquilamente pode ser apelido/diminuitivo de “Lilith”, da antiga língua
hebraica, que segundo a mitologia babilônica (cujos relatos em figuras
esculpidas em terracota datam de cerca de 1.500-2.000 a.C), trata-se de um
demônio feminino que habita o inferno dos infernos (personagem também
mencionada na Cabala), sendo esta mesma figura revelada de maneira MUITO sutil
nos textos Bíblicos do Antigo Testamento de forma bastante dissimulada,
requerendo indicações contidas no livro de Ben-Sira para abstrair essa
compreensão. Aqui consta “Lilith” ser a primeira mulher criada por Deus, era
muito gostosona e sensual e ainda possuía asas, mas disputava com Adão a
igualdade entre os sexos, – a-há! seria ela a primeira feminista na história da
Humanidade a rebelar-se contra o sistema patriarcal? Inclusive tranquilamente fiz
essa leitura da disputa de igualdade entre os sexos quando vi a guerrilha entre
homens e mulheres no decorrer do filme de Louis Malle.
A primeira sugestão da existência de “Lilith” nas Escrituras
acontece na passagem da Gênese sobre a criação de Adão e Eva. Deus criou Adão e
de sua costela Ele criou sua companheira, porém foram duas tentativas do Divino.
A primeira fêmea criada foi “Lilith” e não Eva... sendo o segundo humano da
Criação [que também veio do pó da terra] uma criatura de aparência feminina,
mas com atitudes e instintos Alfa – comparados ao Homem –, e por isso mesmo uma
criatura independente/emancipada que não se submetia ao macho durante a relação
sexual e devido a isso foi rejeitada por ele; a terceira criação em forma humana que Deus fez – tendo
agora como matéria-prima a costela de Adão – foi Eva, e esta sim foi aceita
pelo homem como digna de ser sua companheira (pois mostrou-se submissa a ele) –
já traçando parâmetros com os dois irmãos do filme, podemos compreende-los com
essa alegoria, seriam eles uma versão fílmica moderna de Adão e Eva (mais sua
irmãzinha ovelha-negra da família – “Lilith”), que se formos ao pé da letra,
são irmãos quase univitelinos pois um foi criado por Deus, e também a outra do
pó da terra feito Adão e a terceira da costela do primeiro, sendo os três
filhos do mesmo Pai.
É interessante perceber outra pista velada desse triangulo
familiar, quando a mocinha estúpida “Lily” [que no inicio do filme está com
roupas e aparência de homem, sugerindo essa independência/rebeldia dela do
julgo masculino...] compreende que o nome dos dois irmãos também é Lily... É
coerente saber que a figura da primeira mulher da Criação é também a Serpente (algumas
pinturas da Renascença e esculturas sagradas da Antiguidade pagã deformam “Lilith”
com um busto feminino com asas e ancas de serpente; ou quando não uma figura
feminina que controla os animais, sobretudo as cobras – no filme de Malle há
passagens em que “Lily” se depara com algumas; e talvez explique a casa repleta
de bichos); e na Gênese é Lilith-serpente quem dá o fruto proibido à abestadinha
Eva para ela persuadir o sem-noção do Adão também ingerir o alimento.
O Bíblico Jardim do Éden a meu
ver pode tranquilamente ser alegoria da primeira infância do homem, quando tudo
é simples e sem sofrimentos onde lhes é oferecido os cuidados de um pai; e a
expulsão do casal deste lugar representa a passagem para o mundo adulto repleto
de angustias e ansiedades, pois agora é a fase da utilização do Saber e arcar
suas consequências. Após a ingestão do fruto da árvore proibida – que não à
toa, é chamada “Árvore da Vida e do Conhecimento do Bem e do Mal” –, Adão e Eva
“abrem seus olhos” (a Terceira Visão, talvez?) sendo expulsos do Jardim do Éden
(e “Lilith” também sai com o rabinho entre as pernas), e todos vão viver do
sustento de seu trabalho no campo – assim como os irmãos-Lily vivem no filme.
Outra
possível pista atribuída ao enlace harmonioso entre Adão e Eva e do momento em
que “acordam” seus sentidos por comerem o fruto proibido, sendo expulsos do
Jardim do Éden para o mundo perdendo sua condição eterna, é o texto poético que
a velha vigiada pelo mucurão dita através da boca de “Lily”, lá pelo meio do
filme; momento muito intenso, forte, bonito. Delicado, aliás. Acho que foi a
passagem do filme que mais gostei. Eis o texto:
“Esperança...
Esperança.
Noite de amor que nos rodeia.
Olhos, dias como lembrança em um só suspiro.
Unidos...
Unidos... em um só suspiro.
Mas... o dia se desvanece com todo seu brilho.
Toda poderosa morte – Mágica.
Mágica morte, que ameaça minha vida.
Como poderia?
Como poderia perecer o eterno?
Almejando a cegueira perpétua,
onde para sempre a esperam o amor e o êxtase.
Coração com coração.
Boca com boca.
Tudo é ilusão.
Liberte-nos desse mundo.
Sonho de eternas promessas.
Nossos corações anseiam...
E à morte,
os homens não chamaram bela e vã ilusão.
Doce e esperado anseio.
Nunca despertar.
Nunca temer.
Ali, sem nome.
Um ao outro, pertencendo.
Apenas com amor,
a fonte da vida”.
“Lilith” em algumas religiões sumérias pagãs era cultuada
como deusa da Lua e da fertilidade, com suas fases comparadas ao satélite da
Terra. Ou seja, a deusa era bipolar coitadinha... tinha suas fases boas (claro)
e ruins (escuro); daí a associação com o nome do filme, e com o próprio
comportamento oscilante de “Lily” na trama – comportamento aliás abertamente
contestado nas falas do unicórnio presunçoso. Há ainda a questão de “Lilith”
ter sido castigada por Deus devido a mesma não ter se submetido a Adão. Como castigo
ela sofreria abortos de cem filhos por dia e não seria capaz de criar seus próprios
rebentos caso eles vingassem, seriam todos órfãos na condição de pequenos
vampiros alimentados por carne crua e/ou sangue humano – seriam estes
representados pelo bando de criancinhas peladas no filme de Malle? Talvez. Há
uma pista disso, pois no filme essas criancinhas se alimentam de carne crua...
No final das contas, tanto Eva quanto Lilith representam as
faces femininas com suas fases lunares ora submissas, uns anjos... ora demônios
e cheias de fuleragens para com seus namorados/maridos/amantes. Devo seguir e
perseverar neste texto. Embora eu escreva somente sobre filmes (ou obras artísticas
que eu tenha gostado muito), confesso estar com baita preguiça para escrever
este aqui. Há muitos pormenores a costurar em “Lua Negra” para sua compreensão,
e de antemão decidi não discorrer sobre todos os retalhos para não quebrar o
encanto e independência da rede tecida pelos famintos espectadores. É bom dar apenas
a rede e ensinar a pescar..., pois o trabalho dignifica. E este texto não é único
nem definitivo falatório sobre o famigerado filme surrealista de Louis Malle.
Falemos agora da figura do unicórnio de medidas XGGG – um ser
mitológico e lendário com aparência de equino com um chifre em espiral cravado
no meio da testa. Na China Medieval era dito como símbolo régio de honestidade
e poder; tendo ainda autoridade para combater as injustiças cometidas pelos
homens e também possuir faculdade magica de engolir os eclipses do sol,
dissipando as Trevas. Seu chifre representa a espada de Deus, raio solar ou
flecha espiritual, a Revelação Divina. No Catolicismo representa a iconografia
do Dogma Máximo da virgindade de Maria (a mãe de Cristo), mulher comum
fecundada pelo Espirito Santo; o mesmo chifre também faz alusão ao seio materno de Maria que
alimenta o Menino-Deus com seu leite. Para os Alquimistas o chifre do unicórnio
representa a sublimação da sexualidade, sendo ele um falo psíquico e pela
sublimação dos desejos da carne também é visto como alegórica abertura do
Terceiro Olho – o portal psíquico que dá acesso ao Nirvana, o caminho possível para
decifrar os enigmas herméticos transformadores dos elementos brutos em ouro
(pureza máxima). É este unicórnio que “Lily” persegue mais da metade do filme,
e é ele quem dá algumas pistas à estupida mocinha para seu bem-viver, mesmo
assim a garota não é capaz de entender sua condição ou o que acontece ao seu
redor; agindo sobretudo, por impulso, atirando-se em direção aos seus erros e
acertos.
Engraçado que no final do filme “Lily” é persuadida a
alimentar o próprio unicórnio com seu leite juvenil. Seria talvez a alegoria da
incansável misericórdia de Deus em perdoar suas criaturas, trazendo-as de volta
à Luz – o ponto inicial da Criação? Pois como já foi dito em paragrafo acima, a
figura do unicórnio carrega o simbolismo do Fogo Divino e seus atributos. Algo
que modifica, suplanta, resgata; e por isso mesmo abre caminho para mudanças,
para novos horizontes, novos experimentos. Mesmo o titulo do filme se for
compreendido pelo viés astrológico, também sugere o caos que antecede as
mudanças (ou rito de passagem). Tudo sugere estar em transito, em mobilidade, abrindo possibilidades de que sempre podemos mudar, interferir no curso de nossas vidas para bem e melhor;
sem escaparmos contudo, das consequências das escolhas que nos levarão a esse
fim, pois no Universo as coisas são sempre equivalentes.
Hellen Katiuscia de Sá
Escrito em: 29 de
Julho; 01 e 02 de Agosto de 2013.
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BLACK MOON (Lua Negra) – Ficha Técnica:
Gênero: Drama
Direção: Louis Malle
Roteiro: Ghislain Uhry, Louis Malle
Produção: Claude Nedjar
Fotografia: Sven Nykvist
Trilha Sonora: Diego Masson
Duração: 100 min.
*Confira também outro excelente texto sobre o filme:
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