sábado, 3 de março de 2012

ORFEU NEGRO _ o filme

A poesia do cotidiano que suporta sem dizer um “ai” todas as trapaças, invejas e torpezas humanas contra o surgimento e continuação do amor verdadeiro. Uma história de resistência, pois o Amor Verdadeiro é apenas para os fortes... Com uma evidente ironia, esse amor nasce como uma flor de Lótus que rasga todos os níveis de lama e de pobreza do espirito e da carne... Há apenas um dia do Carnaval do Rio de Janeiro, o amor é revelado a Eurídice através da voz despreocupada de Orfeu, que se distrai ao ceder sua emoção cantando e dedilhando um violão surrado.

Com o roteiro adaptado diretamente da peça escrita por Vinicius de Moraes (Orfeu da Conceição), é de se compreender a arrebatadora história de amor mostrada no filme ORFEU NEGRO, que ganhou vida através de uma produção ítalo - franco - brasileiro tendo a frente a direção de Marcel Camus. Este filme brasileiro (que também é francês e italiano) estreou em 1959, desbancando produções de Truffaut e Buñuel em festivais de cinema do ano de 1960, inclusive o Oscar de melhor filme estrangeiro.


O lirismo e o sobrenatural por detrás das coisas fúteis e comuns que nos rodeiam no dia-a-dia são percebidos a todo instante nas vidas de Orfeu e Eurídice, pois o casal encontrou um no outro esse caminho da Verdade das coisas – o amor não fantasiado que nos faz acordar de manhã e reconhecer os olhos de quem nos trouxe a vida de volta ao coração.

O impossível acontece e é acreditável como uma simples oração de amor cantada em um violão que têm o poder de fazer o sol erguer-se no céu. Sim... é o Amor. Esse amor dos mitos musicado e versado por todas as Civilizações através dos tempos, devidamente transportado para a linguagem cinematográfica. ORFEU NEGRO conseguiu conduzir para a tela do cinema e transcendê-la numa conexão perfeita entre os espectadores, esse cordão mágico e ilusório da história, a ponto de erguermo-nos da poltrona em palmas pela membrana dos olhos da Alma que nos foi alcançada.

Uma obra prima do cinema mundial. A verossimilhança das coisas imersas no universo invisível e sobrenatural; aquele acordo entre plateia e filme de que tudo é verdade, em ORFEU NEGRO não acontece; simplesmente esquecemo-nos desse acordo e Orfeu e sua Eurídice nos conduzem com eles para dentro de sua história desde o primeiro segundo de filme. Uma realidade dilatada pela “pobreza” que rodeia os personagens trás uma compreensão do filme pra lá da razão...

O universo dos protagonistas, puramente conduzido pela emoção. O filamento genuíno capta o coração, e percebemos onde estão os demônios no dia-a-dia; onde estão os infernos e os purgatórios reais na verdade da Vida dilatada. O “mascarado” que encerra em si toda vilania contida nas sociedades, simbolizado pela Morte. Os “anjos”, os dois meninos da favela da Babilônia amigos de Orfeu; são eles que ajudam os protagonistas em seus planos senis de burlar a correnteza malvada, histórica e inerente que a vida tece contra todos os apaixonados...


São as crianças e os bichos na alcova de Orfeu a simbolizarem a Pureza que ainda existe no mundo. Enquanto as pessoas estão freneticamente vivendo emocionadas pela ilusão que o Carnaval projeta, o enamorado casal vive seu conto de fadas dentro de suas vidas com tal naturalidade, que o filme pesca o espectador tão desarmado e profundamente mergulhado diante de tamanha verve, que não se percebe no cinema, e sim numa realidade paralela: o sonho compartilhado por todos ali presentes.

Como era de se esperar de toda obra de Vinicius de Moraes essa verdade da vida sendo esguichada de tudo que sai de sua obra, ORFEU NEGRO como uma adaptação de um de seus escritos não poderia ser diferente: as sociedades evoluem, mas há algo que permanece intocável e a salvo que se faz revelar quando uma Obra de Arte cumpre seu papel de comungar com seu observador. A poesia transcende e o lirismo vence; assim é em ORFEU NEGRO, sobretudo na cena final, quando mesmo em meio a desgraças, a esperança se renova a cada instante através do lúdico encontrado no universo das crianças. Arrebatador!


Katiuscia de Sá
26 de fevereiro de 2012.
2:35 a.m.

Nenhum comentário:

Postar um comentário