quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO


A espetacularização, fatalismo e perpetuação tradicionalista à flor da pele. O diretor Glauber Rocha apropria-se de elementos inerentes à cultura nordestina para mostrar as desigualdades sociais do País. Ícones tradicionais são distribuídos ora em prosa, ora em verso, num movimento aparentemente desordenado. O filme dispensa muitas falas. A narrativa desliza através de imagens, ações, danças e músicas, o que possibilita a leitura dos significados imagéticos.

Um cangaceiro se auto-intitula reencarnação de Lampião – o rei do cangaço. Aparece ele trajado a caráter, como nos bandos de outrora, porém, sua força de luta está contida na ritualística cultural dos costumes nordestinos. O “duelo” é o repente (conhecido também como “desafio”, é uma tradição folclórica brasileira cuja origem remonta aos trovadores medievais, que no nordeste acontece sob forma de cantoria rimada e improvisada); o coro de beatas faz pano de fundo através de cantorias e lamentos festivos, típicos da região da seca. A miséria, a fome, dominação ideológica dos “coronéis”, tudo influencia para a “domesticação” do homem do campo.

O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO arrebatou no ano de 1969 as premiações de Melhor Direção no Festival de Cannes; Melhor Direção segundo a Confederação Internacional de Cinema de Arte e Ensaio; Primeiro Prêmio do Festival de Louvaing (Bélgica); Prêmio do Público – Menção Honrosa Especial, na Semana Internacional de Cinema de Autor (Espanha). Este filme foi a continuidade do DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, no qual o personagem Antônio das Mortes já transitava.

Uma das inovações do filme foi a sacada de Glauber em apropriar-se dos ícones tradicionais e colocá-los como atores sociais fora do contexto da teatralização cotidiana. A ritualística das ações das personagens centrais está disposta fora das situações nas quais normalmente ocorrem essas dramatizações sociais. Por exemplo, a luta entre Antônio das Mortes e Corisco – cangaceiro reencarnação de Lampião obedece às aparências de festejos populares, embora na narrativa do filme não se trate de festejo ou dramatização social, seria algo real dentro de um contexto real.

Tal recurso oferece ao filme um tom “teatralesco”, no qual é possível mostrar ao público espectador toda opressão, grau de alienação e subjugação que se encontram as classes menos abastadas do Sertão nordestino; além da insanidade generalizada e busca por um ponto de fuga cujos personagens procuram desesperadamente, para poderem suportar àquela realidade sem perspectivas que o filme retrata.

Outro aspecto interessante é o jogo de imagens e insinuações que Glauber Rocha se utiliza para mostrar poeticamente que mesmo, em meio ao caos, o ser humano recorre à Arte como subterfúgio de expressão e assimilação do cotidiano, mostrando esse diálogo como algo possível de ser belo.

O filme todo brinca com esse tom “espetacular”, no qual o cidadão comum torna-se um “super-herói” apoiado nos próprios mitos de sua cultura. A dialética contida nos poucos diálogos também contribui para a interpretação da mensagem. Ângulos plongè e closes colaboram para mostrar o desamparo social (e de loucura) que as personagens mergulham em si mesmas.

A interpretação dos atores está condizente com a proposta do filme. Um professor bêbado e desesperançoso; um matador arrependido e sem rumo, um delegado corrupto e covarde; beatas em transe; um padre sem voz e força de expressão; um cangaceiro com aspectos mitológicos; um latifundiário raivoso, (porém cego); e sua esposa – uma mulher submissa que mais tarde, acionada pela desgraça dos acontecimentos, toma iniciativa de matar o delegado amante… na cidade de Jardim das Piranhas, morte em massa!

Glauber Rocha incorpora ainda valores do sincretismo religioso, invocando São Jorge Guerreiro – Santo protetor da Inglaterra, que em terras brasilis é a configuração de “Ogum”; daí recorre o nome do filme, que é sem dúvida uma aula de semiótica, de valores sociais, tradicionalismos e antropologia cultural.

Katiuscia de Sá
11 de Fevereiro de 2009.


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