Nunca na minha vida eu tive tanta dificuldade em assistir a
um filme como tive em “Fahrenheit 451” de François Truffaut, não como problema
para compreendê-lo e sim pelas cenas de violência psicológica (pelo menos para
mim), onde os bombeiros-investigadores-inquisidores vasculhavam casas e
moradores atrás de algo ilegal, que no enredo eram os livros. Já na primeira
sequencia de “Fahrenheit” senti-me desconfortável ao ver um pequeno amontoado
de livros sendo queimado no meio da rua em sinal expresso de que a cultura e o
direito a ela era algo condenável e destrutivo para a sociedade...
Aguentei a cena... , e à medida que o filme evoluía fui
tomada pelos cenários internos, muito cleans (agradáveis até esteticamente), um
misto de tradicional com pitadas de um futurismo subentendido – discreto; a estória
pra lá de escancarada beirando o nonsense dialogando freneticamente com o que
reconhecemos de realidade nossa, entretanto, o ilegal aqui é o contrabando e
leitura de livros. A população extremamente alienada em suas posturas, como
robôs alheios de si mesmos, sem sentimentos ou fugindo deles, sem lembranças do
que a sociedade era antigamente.
Um filme genial e perturbador com discurso visivelmente gritando
ao que consiste na liberdade intelectual do ser humano. Lá pelas tantas eu
realmente não suportei, dei pausa. Havia chegado à cena em que os ‘bombeiros’
invadiam uma enorme casa que abrigava em todos seus compartimentos várias
sub-bibliotecas. E prevendo a ação dos policiais vestidos de preto em atear
fogo a tudo, eu fiquei perturbada com isso. Parei de ver o filme e comecei a
escrever este texto, justamente para que minha angústia me deixasse pensar em
paz para absorver a mensagem de forma a não me envolver emocionalmente.
Em “Fahrenheit 451” o questionamento de que os livros
carregam a dualidade inerente ao ser humano é também algo que convida o
espectador a pensar sobre seu ego e postura diante dos fatos cotidianos e em
coletividade. Em uma das falas do ‘capitão’, ele insinua que o mal para a
sociedade advém dos livros, dizendo que eles ditam modas, comportamentos,
pensamentos de outrem, projetando os escritores algo acima do bem e do mal, etc...
e isso gera desigualdades de valores; será?
Mas que valores em sociedade são colocados em xeque? Na mesma cena o ‘capitão’
diz a ‘Montag’ que os livros tornam as
pessoas infelizes...
Sobre a obra de Aristóteles, o ‘capitão’ segue sua fala:
“Qualquer um que o tenha lido acredita que está acima de quem não o leu. Você vê, não é nada bom, Montag. Todos temos
de ser semelhantes. A única maneira de sermos felizes é se todos formos iguais.
Por isso temos que queimar os livros, Montag.” A cena mais perturbadora (sim,
ainda havia algo mais aterrador para mim além de queimar livros – alusão direta
à loucura dominadora do Nazismo recente... ou à Santa Inquisição da Idade Média)
foi a dona da casa ela própria atear-se fogo recusando-se a negar sua cultura
morrendo junto com seus livros. Também um ato convidativo à reflexão: é
possível a negação de valores quando saímos da Caverna (Platão)? É possível
regredirmos à barbárie de tempos em tempos para obtenção de poder e controle
das massas?
Sim... infelizmente isso ainda é possível. A insensibilidade
ainda domina as massas, principalmente os governantes. A esposa de ‘Montag’ que
se entope de remédios... fica no ar se ela os tomou em demasia porque queria
‘apagar’ sua realidade ou se ela simplesmente o fez sem querer, pois ela como
os demais personagens são mostrados como se estivessem ocos de reações ou
sentimentos. A própria esposa fútil de ‘Montag’ agia com uma felicidade
plasticamente calculada, onde nem ela sabia o que fazia em relação às coisas;
era totalmente dominada pelo quê a TV lhe mostrava, sem chances de pensar. Isso
fica visível na sequencia em que ela dialoga com um programa de TV e não
conversa diretamente com o marido as questões conjugais, porque ela própria
ignora sua essência.
Vem à tona a questão existencial: o Saber liberta ou
aprisiona o Ser? A meu ver liberta, e aprisiona a partir do no momento em que
se descobre a verdade e não agimos contra o conformismo daquilo que percebemos
estar errado... Felizmente ‘Montag’ agiu. Há também uma certa critica na fala
do ‘capitão’ quando ele próprio questiona o que motivava os escritores de todas
as épocas a escreverem. Que no inicio era apenas vontade de escrever que depois
evoluiu para o egocentrismo de dizer ao mundo que suas ideias eram as corretas
em comparação às ideias dos pensadores de séculos outros... há algo para se
refletir aí também.
Interessante observar quando o protagonista começa a mudar
seu ponto de vista, muda também sua interação com o mundo. Uma cena sutil que
pode passar despercebida por ser um tanto inverossímil, é quando ‘Montag’ (já
após ter iniciado suas leituras), subverte a ordem dos pensamentos quando já
não consegue ‘subir’ no corrimão que os bombeiros utilizam para descer. Essa
cena encerra muita coisa. Podemos tê-la simbolicamente como o ponto de mutação
dele em relação ao status quo.
Minha curiosidade sobre o nome do personagem protagonista
revelou-me que ‘Montag’ significa ‘segunda-feira’ na língua alemã, e que sua
origem do alto alemão antigo seria ‘Manitag’, literalmente ‘dia da Lua’; a
compreensão foi buscar no termo latino ‘dies Lunae’ explicando sua etimologia,
que quer dizer ‘dia da (deusa) da Lua’. Na crença romana antiga de onde vem a
lenda da deusa da Lua (‘Luna’ ou ‘Selene’), a ela lhe é dedicado este dia da
semana e também reverenciada a qualquer segunda-feira. A deusa ‘Selene’ é a
guardiã da sabedoria e do poder mágico. Importa saber que nos rituais à deusa
da Lua os indivíduos o faziam para alcançar a claridade/ clarividência da
consciência dentro de si a fim de darem passagem à Luz, ao conhecimento. Onde
as trevas prevalecem dentro dos indivíduos e/ou nações, a deusa Luna
discretamente os convida à lembrança e um retorno à razão e ao equilíbrio...
interessante, não?
Outro simbolismo contido (tentar ao menos perceber...) nas
cenas que aparecem as capas dos livros queimando, os nomes de escritores ‘marginais’
e subversivos como: Gean Genet; Aristóteles; Jean-Paul Sartre; Charles
Dickens; Oscar Wilde; Sade etc., agonizando
no fogo como se os próprios escritores agonizassem em vida tentando ultrapassar
a logica imposta pelo status quo, querendo perpetuar seus pensamentos às
próximas gerações para que (talvez) os mesmos erros atrozes de matança,
humilhação, intolerância, subjugação, etc., não fossem cometidos em sociedade.
Outra crítica aberta Truffaut a faz sem nenhum escopo de
especulação: a perseguição de ‘Montag’ vista pela televisão, (alias por ele
mesmo), em que o próprio assiste sua captura... nas falas de seu interlocutor:
“o show deve continuar...”, aqui Truffaut adverte que também os telejornais são
manipulados para conter apenas a informação que supostamente (...) manterá a
população em paz.
Eu realmente chorei copiosamente emocionada ao final de “Fahrenheit
451”; meu coração foi tocado pelos ‘homens-livros’ (a resistência); pessoas LIVRES
que de certa forma deram suas vidas para perpetuação da informação contida nos
livros, que mantiveram na memória as narrativas destes através da oralidade,
amor e respeito pela liberdade de expressão, saber e cultura.
Esses ‘homens’ e ‘mulheres-livros’ refugiam-se na floresta,
no mato em contato com a essência da vida onde não são perseguidos pela dita civilização.
Fiquei tão feliz ao ver que o livro que ‘Montag’ levaria consigo de agora em
diante, era “Histórias de Mistérios e Imaginação”, de Edgar Allan Poe.
Então, não se pode julgar um
livro pela capa... Talvez Truffaut nos convide a reflexão que o ser
humano devesse retomar às suas origens em comunhão com a Natureza das coisas. Também
nesta cena final se encerra outra simbologia: a de que somos o que lemos e
experimentamos no passar de nossas vidas, e desse modo também a produção dos
escritores (e eles mesmos) vivem através de suas obras passadas de geração em
geração. Talvez por isso os chamem de ‘imortais da literatura’.
“’Eu não farei barulho’, disse Archie. E serei ousadamente
franco. Eu não amo o meu pai. Pergunto-me, às vezes, se não o odeio. Eis a
minha vergonha, talvez o meu pecado. Pelo menos, se aos olhos de Deus, não a
minha culpa. Como eu poderei amá-lo? Ele nunca falou comigo, nunca sorriu para
mim. Acho que nunca me tocou. Ele tinha mais medo da morte do que qualquer
outra coisa. Ele morreu como pensava que morreria... enquanto as primeiras
neves do inverno caíam.” – Robert Louis Stevenson.
Hellen Katiuscia de
Sá
Escrito entre 06 à 08 de outubro de 2012.
*Em jejum na penumbra
do meu quarto, no silêncio e solidão da madrugada e do dia...
FAHRENHEIT 451
Ficha Técnica:
Diretor: François Truffaut
Elenco: Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack, Anton Diffring, Jeremy Spencer, Bee Duffell, Ann Bell, Caroline Hunt, Anna Palk, Alex Scott.
Produção: Lewis M. Allen
Roteiro: Jean-Louis Richard, David Rudkin, Helen Scott, François Truffaut
Fotografia: Nicolas Roeg
Trilha Sonora: Bernard Herrmann
Duração: 112 min.
Ano: 1966
País: França / Reino Unido
Gênero: Ficção Científica
Cor: Colorido
Distribuidora: Não definida
Estúdio: Universal / Anglo Enterprises
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