sexta-feira, 19 de outubro de 2012

FAUSTO nas telas do cinema

Não é à toa que a obra literária alemã de Goethe com seu “O Fausto”, que originalmente foi escrito em poesia, (mas em algumas trasladações para outros idiomas encontra-se em prosa) é uma infinita inspiração para criações de peças teatrais, óperas, pintura e também para o cinema. “O Fausto” do escritor iluminista é uma interpretação da memoria coletiva germânica da Baixa Idade Média que narra a lenda do suposto médico homônimo, que também seria astrólogo e (diziam ainda) esotérico e alquimista que viveu entre os séculos XVI e XVII na região Nórdica; mas o que diferenciava este dito individuo dos cidadãos normais de sua época seria seu pacto com o sinistro em troca de conhecimento e poder; é o que o povo falava, né! Tanto falava que atravessou séculos...

De seus oitenta e três anos Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832), dedicou a ‘Fausto’ exatamente quarenta anos de sua vida, sendo acrescentada postumamente uma segunda parte que tornaria sua obra um livro magistralmente imortal, poético, histórico, filosófico e até mesmo humanístico. Além da beleza métrica, os versos encerram algo tão extraordinário de se fazer: transcender a beleza da forma para o significado prático das coisas e, diga-se de passagem, quando a forma adquire tamanha leveza e subjetividade a compreensão denotativa pode ficar prejudicada, o que não acontece em ‘Fausto’ de Goethe.

A primeira versão da obra literária para o cinema manifestou-se em 1926, através do coração e mente do cineasta tudesco F. M. Murnau (1888 – 1931) sendo totalmente orientado pelo expressionismo alemão, e efeitos especiais tanto no set de gravações através de artimanhas cenográficas, como na montagem de imagens sobrepostas através de breves fusões, closes e mais explorações experimentais da sintaxe do audiovisual ainda em seu abrir de olhos como arte recém-nascida. O filme era mudo na voz mas não mudo no discurso, que aparecia em letreiros para não deixar duvidas.

‘Fausto’ de Murnau impressiona e penetra no coração de quem o vê de forma indescritível! Uma obra perfeita que, em minha opinião, dificilmente poderia ser suplantada no cinema – entretanto, com o tempo percebo que a linguagem cinematográfica é uma ferramenta de conotações infinitas e ainda vindouras, que sabiamente utilizadas aliadas à imaginação, amor e razão, poderá gerar infindáveis manifestações para o audiovisual, e o interessante que nunca nenhuma matando seu antecessor, e sim o agregando, como um belo exemplo de comunhão criativa.

Como imagem e fantasia o ‘Fausto’ expressionista dos primórdios do cinema, alcança através das imagens em movimento, do claro-escuro inerente à proposta estética cinematográfica utilizada, a transcendência oferecida pela obra de Goethe. É uma atmosfera translucida, suave e assustadora, como num sonho... um sopro de poeira que turva os olhos para o real alcançando estratos de fantástico. Também Murnau bebeu nos quadros da Renascença e do Neo-Clássico para montar algumas sequencias de imagens, e obteve com isso espetacular sucesso estético e vida em suas cenas. As interpretações dos atores (que hoje podem parecer exageradas), completaram o quê de desespero e treva moral e intelectual onde vivia o personagem ‘Fausto’.

Em 1994 o cineasta tcheco Jan Svankmajer –  considerado um dos mestres do stop-motion da atualidade –  mistura em seu ‘Fausto’ atores com marionetes, cujas ações são transportadas para  a contemporaneidade; o extraordinário aqui é a fantasia que ganha vida através de seres inanimados e controlados por uma Força que não se sabe exatamente da onde vem (no enredo...). O fantástico e sobrenatural atravessam as coisas e com isso o espectador é convidado a experimentar o estranhamento beirando o surrealismo que Svankmajer é mestre em realizar para o cinema.

Seu filme sobre ‘Fausto’ é repleto de simbolismos, sugestões do lado magico, profano e fantasmagórico que amedronta o ser humano justamente por mexer a natureza secreta das coisas. Considero um filme perturbador. E o mais inusitado ainda: Svankmajer transporta quase todas as ações da trama de Goethe para dentro de um sinistro teatro, com trejeitos de teatro medieval de fantoches, cujas conotações são grandiosas pela utilização do artificio de títeres e também da agonia visual gerados pelo recurso do stop-motion. Vale à pena conferir essa leitura estética e bastante surreal do cinema para obra poética de Goethe.

E bem recente nos deparamos com ‘Fausto’ do diretor russo Aleksandr Sokurov, que arrematou o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2011. Realmente uma obra cinematográfica, a meu ver: perfeita! Considerei também uma livre interpretação da lendária historia do medieval Dr. Fausto que atravessou o tempo e se imortalizou através de Goethe e Thomas Mann (1875 – 1955), de quem Sokurov também teceu suas conexões mentais para concepção de seu filme.

A fotografia, figurinos e cenários harmoniosamente perfeitos, também inspirados diretamente das Artes Plásticas de pintores como Rembrandt, Bosch, El Greco e Gioto; daí a beleza insondável da composição estética. E para alcançar o inaudito, danação e desespero de ‘Fausto’, Sokurov ainda brinca com distorções de imagens; de planos-sequencias; da utilização da paleta de cores para seu filme em cinza-ocre, um desbotado azul-turqueza e verde-musgo aderindo um eterno Inverno, sujeira e encardido à realidade miserável de ‘Fausto’ (interpretado pelo ator Johannes Zeiler) –  um homem letrado, conhecedor dos mistérios metafísicos, da Astrologia, Filosofia, Medicina, etc... que entretanto, não tem dinheiro sequer para comprar comida, vive numa eterna busca para o significado de seus dias em desvendar onde está a Alma do ser humano, e a sua própria...

‘Fausto’ recorre ao agiota ‘Mauricius’ (interpretado pelo ator Anton Adasinsky) –  sendo este a adequação para ‘Mefistófeles’ da obra de Goethe no filme de Sokurov. Eu diria que tudo escorre pelo tempo cinematográfico. O filme é líquido para demonstrar a situação enrijecida  da Idade das Trevas. Com 2h15 de duração há quem ache essa evaporação lenta... eu achei perfeitamente adequado à situação ora onírica, ora histórica inerente ao próprio filme. Sokurov, acima de tudo, utiliza a ferramenta e sintaxe do cinema a favor de sua obra. Nada escapa. Tudo no seu devido lugar. Em alguns momentos (e isso é inevitável), cheguei a lembrança sensorial dos filmes de Tarkovski.

O que me chamou atenção também era o olhar do agiota. Um olhar indescritível encerrado numa atuação primorosa, a personificação de ‘Mefistófeles’ da obra de Goethe num bufão. Para quem conhece as particularidades entre palhaço, clown e bufões sabe que este ultimo é tido como o mais intelectual em suas criticas sociais e também o mais cruel e grotesco possível; perfeito para encarnar ‘Mefistófeles’ a tal ponto de ficar no meio termo entre o demoníaco e algo mais verosímil em ações. A surpresa do sobrenatural é revelada na cena das lavadeiras, quando sem pudor ‘Mauricius’ se despe para o banho. A fotografia do filme inteiramente harmoniosa e perfeita em sua forma.

Outro artificio que achei primoroso, foi o diretor russo valer-se da sensação de claustrofobia – ‘Fausto’ com sua imensidão e desejo infinito pelo Saber, preso naquele corpo limitado e humano da Idade Média mostrado frequentemente em lugares apertados, cavernas, becos, passagens secretas e escuras. Também a sensação  de aperto e mal-entendidos corporais de gestos e ações vividos pelos personagens contribuía para essa atmosfera desesperadora presa no interior de ‘Fausto’.

Eu queria saber alemão fluente para não perder tempo com as legendas para sorver-me inteiramente pelas imagens belíssimas da composição de todas as cenas. O filme é perfeito mesmo! Acho que nunca havia presenciado total domínio das ferramentas e sintaxe da linguagem cinematográfica por outro diretor desde Charles Chaplin, Orson Welles, Herzog, Kurosawa e Tarkovski – cada um em determinado período da história do cinema. ‘Fausto’ de Sokurov é belo, sinistro, metafísico.

O sorriso perturbador de ‘Margarida’ (interpretada pela atriz Isolda Dychauk) na cena do enterro de seu irmão, quando ‘Fausto’ ensaia um tocar nas mãos da menina e ela o submete a um sorriso macabro e realmente indecifrável, dialoga com a suspeita convidativa ao espectador temer se ela realmente seria a encarnação da luz para a vida de ‘Fausto’... fato também endossado na cena em que ele satisfaz seu desejo de possui-la. Cena tão onírica... tão perturbadora. O amor aqui levado ao equivoco da compreensão de ‘Fausto’ que repetia sem parar: “preciso ir embora daqui”. Nesse caso o que ele procurava com sentido para sua vida, foi também apodrecido pelo sinistro contrato com ‘Mauricius’ – o amor em sua plenitude tornou-se moeda de troca pelos desejos sexuais do médico, perdendo desse modo a sublimação de sua alma.

‘Fausto’ de Sokurov fica em aberto da compreensão de quem enganou quem nessa história. Se o doutor protagonista é levado pela podridão de suas próprias vontades ou induzido pelo sinistro? Se Margarida realmente não sabia das reais intenções de dr. Fausto em persuadi-la. Como toda obra genial, não conclui nada, apenas traz à tona reflexões que se completarão à sorte de cada juízo individual. Belíssimo filme realmente.



Hellen Katiuscia de Sá
19 de outubro de 2012.
04:06 P.M.
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FICHA TÉCNICA:

"FAUST"
Diretor: Aleksandr Sokurov
Elenco: Johannes Zeiler, Anton Adasinsky, Isolda Dychauk, Georg Friedrich, Hanna Schygulla, Antje Lewald, Florian Brückner, Maxim Mehmet, Katrin Filzen, David Jonsson
Produção: Andrey Sigle
Roteiro: Aleksandr Sokurov, Marina Koreneva, Yuri Arabov
Fotografia: Bruno Delbonnel
Trilha Sonora: Andrey Sigle
Duração: 134 min.
Ano: 2011
País: Alemanha
Gênero: Drama
Cor: Colorido
Distribuidora: Imovision
Estúdio: Proline Film


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